quinta-feira, maio 26, 2005

Os três amores

Sensualidade – Conhece cada centímetro do meu corpo. Saboreia-me como a um pêssego. Quer que na sua cama eu viva o paraíso e transformou o meu ventre num local de culto. Assusta-se com a simples ideia de caminharmos juntos pela rua e receia o significado das palavras.

Companheirismo – Partilhamos experiências e visões do mundo. Lutamos juntos pelos ideais e pela vida de todos os dias. Tem medo de partilhar o prazer e de aprofundar os sonhos.

Sensibilidade – Abriu-me as portas da sua imaginação, guiou-me por sonhos, deu-me sorrisos e lágrimas de emoção. Não temos vivências em comum e nunca me deu um beijo.


quinta-feira, maio 19, 2005

*Vermelhices (Comentários Políticos) XVIII*

Liguei a televisão para ver as notícias enquanto almoçava. Não tardou muito para que as lágrimas rolassem dos meus olhos e fossem alagar o prato. Motivo: o encerramento de mais uma fábrica têxtil ao norte do país. Dois minutos depois anunciam que os números do desemprego voltaram a subir; 412 mil. A maior parte são mulheres.

Estas imagens repetem-se. Operárias à porta das fábricas impedindo que as máquinas saiam. Em todas elas a mesma frustração, o mesmo desespero, as mesmas queixas, as mesmas palavras de ordem. Doí-me. Doí-me sempre que fecha uma fábrica em Portugal.

Chama-se Joana. Começou a trabalhar com 16 anos numa empresa têxtil, algures no norte do país. É operária. No dia em que fez 23 anos recebeu a triste notícia de que a fábrica iria fechar. Não foi uma notícia inesperada, mas foi triste. A esperança é a última que morre, diz-se. A Joana não gosta da palavra esperança, nem gosta do provérbio “quem espera sempre alcança”. A vida tem-lhe ensinado que não se deve esperar por nada, deve-se lutar por tudo. Mas gosta da palavra sonho e prefere dizer que o sonho é o último que morre.

Os sonhos da Joana não são muito ambiciosos, resumem-se a uma vida simples; na sua terra, com a sua família, com as suas companheiras e o seu trabalho. Gosta de acordar cedo e respirar o ar da manhã, tomar o café com leite e o pão com manteiga à janela e descer a rua até à fábrica. No Inverno, pelo caminho, arranca azedas e vai chupando. Um hábito que nunca perdeu.

Não tem a graça de outras raparigas, não tem gargalhadas sonoras, não tem gestos delicados, não pestaneja com doçura, mas é uma jovem mulher de 23 anos que quer ser desejada e admirada.

Deixou de estudar com 15 anos. Não tinha dificuldades de aprendizagem, mas nada à sua volta lhe dizia para continuar os estudos. Os pais repetiam que ela devia estudar, mas não lhe souberam dizer porquê. Os deveres eram muitos, as distracções também e pesou, sobretudo, a vontade de ser independente e de se sentir adulta. Depois arrependeu-se. Não se arrependeu de ter deixado de estudar, ainda não. Arrependeu-se de ter querido ser adulta muito cedo. Tinha a consciência de que isso a tornou uma mulher seca. Mas não pensava nisso. E tinha momentos de alegria. E sabia retirar prazer do seu trabalho. Fazer as coisas bem realizava-a.

Na fábrica era uma excelente operária. As suas colegas eram também boas operárias. Algumas raparigas da sua idade não conheceram outra vida senão a da fábrica; uma delas estava lá desde os seus sete anos. Só passados muitos anos é que percebeu a razão porque era dispensada, juntamente com outras colegas, alguns dias do ano, quando iam uns homens de uma tal de Inspecção Geral do Trabalho. A Joana trabalhava na montagem das teias; controlava a inserção dos fios nos olhais dos liços e verificava as remissas, controlava também a inserção nas puas e a tenção da teia. Mas conhecia todo o processo de confecção de um tecido; as ordens de tecelagem, o controlo das lançadeiras, o controlo do bater do pente, o remate, os vários processos de acabamento. Na fábrica só se trabalhava a lã, fibras acrílicas e algodão. Tinha aprendido a trabalhar o nylon, mas o patrão acabou por vender o equipamento porque não quis investir na tecnologia de obtenção do fio que tornaria, a médio prazo, o processo mais barato. O patrão era muito dado a requintes, no entanto não passava de um imbecil que herdara a fábrica e que continuava a fazer exactamente o mesmo que o pai fazia desde os anos 50: receber lã de Inglaterra ou da Austrália, produzir os tecidos segundo padrões ingleses, colocar auréolas que diziam “made in England”, por vezes “made in Germany”, e enviar a preços baixíssimos para as empresas inglesas.

No início as trabalhadoras achavam piada ao verem nas lojas o produto do seu trabalho vendido como fazenda inglesa, Mas depois começaram a revoltar-se contra o fabrico daquelas auréolas e chegaram mesmo a pensar boicotar. Não seria difícil; bastava pedirem a alguma das desenhadoras, que trabalhavam num gabinete dentro da fábrica, que alterasse a ordem de tecelagem daqueles poucos fios tecidos em damasco ou com uma teia dupla, para que o resultado em vez de ser “England” fosse “Portugal”. Bem se arrependeram mais tarde de não o terem feito.

Joana gostava de andar pelo armazém da fábrica onde se empilhavam milhares de bobines de fios coloridos; laranjas, verdes, azuis, castanhos, amarelos, vermelhos. O trabalho era duro, principalmente no verão, manejar a lã e a fibra acrílica tornava-se um suplício. Mas o resultado enchia-a de uma contida felicidade: cumprir mais uma encomenda. As operárias da fábrica falavam das encomendas e da obrigação de cumprir prazos com mais zelo que o patrão. Elas tinham bem presente o tempo de trabalho necessário para cada tarefa, sabiam na perfeição quanto lucrava o patrão por cada hora de trabalho sua. O trabalho na produção em médias ou grandes fábricas confere essa consciência aos trabalhadores; enquanto desempenham tarefas repetitivas começam a fazer contas ao número de vezes que repetem cada operação; ao número de peças que produzem, ao número de horas que trabalham, ao preço a que são vendidos os seus produtos, ao custo de cada mercadoria. Mas ele gostava de se pavonear, de vez em quando, por entre os teares dispostos em duas filas ao longo de um grande armazém, e de rispidamente ordenar que trabalhassem sem se distraírem. Tinha de gritar, os teares em laboração são muito ruidosos e muitas das operárias iam ficando surdas. As mulheres mais velhas já não lhe davam grande atenção; algumas delas lembravam-se dele garoto a atrapalhar o trabalho. As mais novas tremiam com medo. Uma delas chegou a urinar pelas pernas abaixo porque ele insistiu que ela queria era fazer gazeta. Ela sentiu-se humilhada. As colegas odiaram-no ainda mais.

A fábrica era a vida da Joana e das suas colegas. Por aquele trabalho ela tinha feito um aborto aos dezassete anos. Algumas das operárias tinham filhas e cunhadas ali empregadas, umas poucas os maridos. A fábrica era, à semelhança de muitas outras do género, o sustento da maior parte da gente naquela terra. Os próprios cafés, a mercearia, o talho, o supermercado, o cabeleireiro, a escola e até mesmo a florista viviam em torno da fábrica. Antes da fábrica vivia-se da agricultura e a pequena vila não tinha quase nada. Depois cresceu, algumas das pessoas que trabalhavam no campo tornaram-se operárias e os fios dos teares entrelaçaram-se com as veias daqueles habitantes.

Entretanto começaram a ouvir-se notícias das “deslocalizações” de outras fábricas para sítios onde a mão-de-obra era mais barata. O patrão usava desse argumento sempre que se discutiam aumentos de salários. Algumas das trabalhadoras tornaram-se mais medrosas. Ele falava na impossibilidade de manter o posto de trabalho de todas, e lamentava. Tudo em nome da competitividade. Os delegados sindicais lembravam as contas e até se faziam contas em grupo. O lucro continuava a existir. O patrão continuava a conduzir o seu reluzente BMW pelas estradas esburacadas e enlameadas da vila. Continuava a habitar num monstruoso casarão cheio de mármores e com uma sumptuosa piscina. Mas a liberalização do mercado dos têxteis à China foi o que despoletou a decisão final.

Naquele dia o bolo de anos soube-lhe mal. Toda a vila se enlutou e até o padre na homilia lamentou. E as operárias sentiram que lhes retiravam o ar para respirar. Sentiram-se injustiçadas: que culpa tinham aquelas mulheres das relações macroeconómicas? Tinham a certeza da qualidade e da necessidade do seu trabalho. Sabiam que com melhores máquinas e melhor formação podiam fazer tecidos ainda melhores, mas que o patrão nunca lhes deu ouvidos. Sabiam que havia gente sem dinheiro para se agasalhar. Sabiam que podiam ter sido tomadas medidas para que os seus produtos fossem preferenciais no mercado português. Sabiam que as operárias chinesas, e as operárias do leste europeu também passavam dificuldades. Reviram, cada uma delas, a sua vida e o que poderiam ter feito para evitar o encerramento da fábrica. Imaginaram o negro futuro. Famílias sem sustento, a vila sem vida e a vida sem sentido.

Não quiseram que o desespero e o sentimento de impotência tomassem conta delas. Reuniram-se ali mesmo entre as bobines coloridas e, pela primeira vez, com as máquinas em silêncio e decidiram: “Não saí nem um liço!”. E todos e todas, sem excepção, desde as operárias, ao pessoal da tesouraria, da manutenção, do desenho, montaram um acampamento em frente ao portão por onde a Joana tantas vezes entrara a chupar uma azeda.

A televisão que chegou para o enterro. Nunca referiu uma só palavra sobre a dedicação ao trabalho e a competência daquela gente. Não ouviu as razões que levaram aquelas mulheres a aderirem à greve geral. Preferiu passar os telediscos da Shakira do que a linda voz da Marta (uma das trabalhadoras). Mostrou inúmeras vezes o talento do Cristiano Ronaldo e nunca se referiu à precisão das cerezideiras portuguesas. A câmara procurava a dor e a angústia e pela frente apareceu a Joana gritando: “Daqui não arredamos pé! A fábrica é nossa! Nós sabemos como a por a trabalhar e não vamos deixar sai nada de lá de dentro!”.

domingo, maio 15, 2005

Hundertwasser - habitação social em Viena Posted by Hello

Hundertwasser - selo cubano Posted by Hello

Hundertwasser - via para o socialismo Posted by Hello

terça-feira, maio 10, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XXXII

A propósito dos 60 anos da derrota do nazi-fascismo

Poemas relacionados com "O Manual de Guerra Alemão"

*
Muitas coisas aumentarão com a guerra
aumentarão
As posses dos poderosos
E a pobreza dos que nada têm
O discurso dos governantes
E o silêncio dos governados.

*
Se se dividirem as terras dos Junkers
Não há necessidade nenhuma de conquistar as terras dos camponeses da Ucrânia.
Se se conquistarem as terras dos camponeses da Ucrânia
Mais terras terão os Junkers.

*
Os que estavam em guerra contra o próprio povo
Fazem agora a guerra aos outros povos
Aos antigos escravos
Outros devem juntar-se.

*
Sob as árvores da aldeia as raparigas
Escolhem os namorados
A morte
Também escolhe
É possível
Que nem as árvores sobrevivam.

*
Noite.
Os casais
Vão para a cama. As jovens
Mulheres parirão órfãos.

*
Os que vão envelhecendo vão
Depositar dinheiro nas caixas económicas.
Diante delas carros estacionam:
Vão buscar o dinheiro
Para as fábricas de material de guerra.

*
Para que conquistar mercados para as novas mercadorias
Que os operários fabricam?
Os operários
De bom grado ficariam com elas.

*
O Führer dir-vos-á: a guerra
É para quatro semanas - no Outono
já estareis de volta. Mas
O outono virá e passará
E denovo há-de vir e muitas vezes há-de passar
Sem que de volta estejais.
O pintor dir-vos-á: as máquinas
Encarregar-se-ão de tudo - muito poucos
Serão os mortos. Mas
Vós morrereis às centenas de milhares, tantos
Que em tempo algum, ou terra alguma, se viu morrer assim.
Quando eu ouvir dizer que estais no Cabo Norte
Ou na Índia, ou no Transval, saberei apenas
Em que lugar poderão um dia
ser encontrados os vossos túmulos.

Bertolt Brecht

segunda-feira, maio 09, 2005

Frase dita ao telefone:
"diz-lhe! diz-lhe que o teu amor não se divide, só se multiplica!"

Estarei a tornar-me numa espécie de Dalai Lama das relações liberais?
Ainda por cima por assistência remota...
SOCORRO!

sábado, maio 07, 2005

Catarse com suporte literário

Primeira leitura
Patrick Suskind
Um combate e outras histórias – conto Amnésia in litteris

Um desabafo de alguém que não retém na memória as leituras que faz. Identifiquei-me muito com este conto. Eu também esqueço com facilidade os livros que leio, romances sobretudo. São poucos os que me ficaram gravados no cérebro. Uma dessas raridades, e ainda assim com lacunas no que toca aos pormenores, é o que descrevo a seguir.

Segunda leitura
John Steinbeck
Ratos e Homens (Of mice and man)
Conta a história de dois jovens que trabalham sazonalmente em grandes quintas nos EUA. Um deles, Lennie é descrito como uma criança gigante. É grande, corpulento, cheio de força e profundamente ingénuo (com algum atraso mental se bem me recordo). Tem uma enorme necessidade de manifestar o seu afecto. Fá-lo com ratinhos do campo; afaga constantemente os pequenos animais que, invariavelmente, acabam por morrer sob uma tortura de festas. A dada altura afeiçoa-se à mulher do dono da quinta (se a memória não me falha). O amor puro que sentia transfere-se episodicamente para ela: Lennie perdera mais um vez um dos seus animais de estimação, desta vez um cachorrito, e a mulher, sentido compaixão pelo rapaz, deixa-o fazer festas no seu cabelo que, levado pela sua imensa ternura dá-lhe um abraço mais apertado e mais festas pelo rosto e cabelo. Ela grita e ele assustado lança-lhe as mãos à garganta acabando por estrangulá-la.
O livro aprofunda ainda, com a subtileza de um grande romance, os muitos modos de entender e manifestar o amor e a amizade.

Terceira leitura

Bertolt Brecht
poema Da violência
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem.

Serei eu agressiva e insensível por negar vezes sem conta esse afago que me sufoca ou será violento quem não entende o não e insiste em querer obrigar-me a aceitar, na esfera da minha intimidade, todo esse generoso carinho?

domingo, maio 01, 2005

*Vermelhices (Comentários Políticos) XVI*

1º de Maio na Horta Posted by Hello


O tempo estava instável. Logo pela manhã os camaradas da União dos Sindicatos da Horta receavam o pior. Mas depois, felizmente, foram mais as abertas que as nuvens de chuva. A ira de São Pedro contra os sindicalistas ainda se fez sentir e o vento arrancou uma das tendas presas nos espaços do chão empedrado na praça frente à câmara municipal. Mas nada de grave. Tudo correu pelo melhor.
O cenário da festa dos trabalhadores lembrava um qualquer filme do neo-realismo italiano: a luta ao lado dos mais intricados rituais populares. A igreja como pano de fundo de uma sardinhada laboral. Copos de vinho e cerveja, quermesses, crianças a correr, velhos curiosos, imigrantes observadores, jovens que se estenderam pela relva, mulheres de traje tradicional, rapazes fardados e empunhado instrumentos de sopro muito bem polidos. Um homem contava que tinha estado em Lisboa 33 vezes, esteve hospedado na pensão flor e aí aprendeu a pagar com cartões multibanco. E pronunciava multibanco com um enorme deleite. Como se naquela palavra residisse toda a modernidade. Depois calou-se e lamentava nunca ter ido à ilha das Flores. Chegou entretanto a corrida do STAL, todos envergando uniformes amarelos. E talvez porque se tratassem de trabalhadores da autarquia, dois homens lembraram-se e referiram com revolta o oportunismo dos autarcas que, numa atitude eleitoralista e mesquinha, resolveram marcar uma outra sardinhada para o mesmo dia. "Em quatro anos não fizeram nada disso, e logo hoje haviam de fazer o mesmo. Sacanas!" afirmou um deles no fino sotaque do Faial.
O rancho cantava: "(...) trabalho, mato o meu corpo, não tenho nada de meu." Uma rapariga vermelha sentada num banco, também vermelho, reconhecia a música, comovia-se e repetia "não tenho nada de meu".

(ver também Vermelha)

ARTE DE TRANSFORMAR XXXI

1º de Maio em Moscovo - Diego Rivera Posted by Hello


"Maio maduro Maio
quem te pintou?
Quem te quebrou o encanto
nunca te amou."

José Afonso