terça-feira, março 29, 2005

*Vermelhices (Comentários Políticos) XIII*

O JOGO DA VIDA

A educação por cá apresenta os mais lamentáveis resultados. Estranhamente (ou não) a indignação não se faz sentir. Tenho vergonha, a sério, do modo como o meu país encara a instrução.

Vivendo nas escolas dou-me conta de que tudo não passa de um circo ou de um teatro. Eu finjo que ensino, os alunos fingem que aprendem, os pais fingem que acompanham, e, estupidamente, os órgãos de gestão constroem o cenário para dar um ar realista a esta escola da fantasia. Tudo isto porque o ministério da Educação finge que tutela.

Na realidade, o que se faz no 13º andar da 5 de Outubro é o jogo das cadeiras. São muitas e a sala é grande. Um espaço excepcional e ainda por cima com vista para as torres do Técnico. Ministros (ou ministras), junto com secretários de estado, chefes de gabinete, assessores e mais algum pessoal que esteja disponível, correm à volta das cadeiras que são em igual número de participantes menos um. Escusado explicar, toda a gente conhece o jogo. Aquilo é rir à fartasana. Os nossos governantes gostam, por grande generosidade, de proporcionar igual prazer a toda a dita comunidade educativa. Criaram então divertidas ocupações relacionadas com os mais diversos campos da educação. Eu, por exemplo, sou professora daquela coisa híbrida, a Área Projecto. Uma área curricular não disciplinar: muito giro, sim senhor. É obrigatória, mas não é uma disciplina. Conta para a nota, mas não se pode passar trabalhos de casa. Serve para os alunos adquirem competências ao nível da elaboração de projectos mas não existem meios para trabalhar. Outra coisa gira é aquela da conversa sobre a importância da formação profissional. É também um jogo simpático: consiste em colocar uns indivíduos falar e outros a escrever sobre como é fundamental apostar na qualificação dos trabalhadores e futuros trabalhadores, ao mesmo tempo reduz-se a componente de formação tecnológica das escolas, correm-se com os professores, destrói-se o equipamento antigo ou deixa-se ao abandono (por falta de tempo para trabalhar com ele), e, muito importante, não se pode adquirir novo equipamento ou matérias-primas. Com este jogo, eu e os meus alunos já passámos episódios divertidos: o de procurar armários para guardar coisas, usar água em baldinhos porque não há água na sala de aula, etc., etc., etc.

Mas a mais recente invenção lúdica do ministério é o fim da picada. É o cúmulo da paródia: o novo concurso para docentes! Depois da risada colectiva que foram os anteriores concursos, a edição 2005/2006 é melhor que a última consola da Sony. Fenomenal! É para quem gosta de pistas de obstáculos, de jogos de sorte e esperteza macaca, é para quem gosta de jogar mikado e outros de paciência, é para quem gosta do quarto escuro e da cabra-cega, é para quem gosta da batalha-naval e da armadilha. Enfim, é multifacetado. A Majora não faria melhor.

As regras são as seguintes:

1- É preciso ler 4 resmas de manuais, portarias, avisos de abertura, que se contradizem e que podem mudar a qualquer altura;

2- Só joga quem tem um bom computador, com uma boa ligação à internet (é o choque tecnológico em acção). Ainda assim não é garantido que se consiga jogar:

3- É necessário ultrapassar todas as fases: a pré-inscrição; a inscrição; o preenchimento; a pré-validação; a validação; a confirmação; a verificação das listas graduadas provisórias; a reclamação; as listas graduadas definitivas, as listas de colocações; a reclamação. E, se não se for colocado; mais listas, mais inscrições, mais reclamações, enfim…

4- Todos perdem. Em diferentes graus, mas todos perdem.

5- Objectivo: o défice (esse grande desígnio nacional por todos acarinhado).

O jogo comanda a vida: é o slogan dos novos tempos. Aprender não pode ser sacrifício. Governar é comédia. Pão e circo já era; agora é mesmo só circo.

Até o amor é uma encenação: não pode parecer o que é, não pode ser fácil.

Só há um pequeno problema nesta esfera de fantasia e sorrisos. A fome existe. Todo o tipo de fome; a fome de pão, a fome de casa, a fome de aprender, a fome de amar.

E os esfomeados: esses desmancha-prazeres.

Eu finjo que acho piada, mas começo a ter fome.

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