*Vermelhices (Comentários Políticos) XVIII*
Liguei a televisão para ver as notícias enquanto almoçava. Não tardou muito para que as lágrimas rolassem dos meus olhos e fossem alagar o prato. Motivo: o encerramento de mais uma fábrica têxtil ao norte do país. Dois minutos depois anunciam que os números do desemprego voltaram a subir; 412 mil. A maior parte são mulheres.
Estas imagens repetem-se. Operárias à porta das fábricas impedindo que as máquinas saiam. Em todas elas a mesma frustração, o mesmo desespero, as mesmas queixas, as mesmas palavras de ordem. Doí-me. Doí-me sempre que fecha uma fábrica em Portugal.
Chama-se Joana. Começou a trabalhar com 16 anos numa empresa têxtil, algures no norte do país. É operária. No dia em que fez 23 anos recebeu a triste notícia de que a fábrica iria fechar. Não foi uma notícia inesperada, mas foi triste. A esperança é a última que morre, diz-se. A Joana não gosta da palavra esperança, nem gosta do provérbio “quem espera sempre alcança”. A vida tem-lhe ensinado que não se deve esperar por nada, deve-se lutar por tudo. Mas gosta da palavra sonho e prefere dizer que o sonho é o último que morre.
Os sonhos da Joana não são muito ambiciosos, resumem-se a uma vida simples; na sua terra, com a sua família, com as suas companheiras e o seu trabalho. Gosta de acordar cedo e respirar o ar da manhã, tomar o café com leite e o pão com manteiga à janela e descer a rua até à fábrica. No Inverno, pelo caminho, arranca azedas e vai chupando. Um hábito que nunca perdeu.
Não tem a graça de outras raparigas, não tem gargalhadas sonoras, não tem gestos delicados, não pestaneja com doçura, mas é uma jovem mulher de 23 anos que quer ser desejada e admirada.
Deixou de estudar com 15 anos. Não tinha dificuldades de aprendizagem, mas nada à sua volta lhe dizia para continuar os estudos. Os pais repetiam que ela devia estudar, mas não lhe souberam dizer porquê. Os deveres eram muitos, as distracções também e pesou, sobretudo, a vontade de ser independente e de se sentir adulta. Depois arrependeu-se. Não se arrependeu de ter deixado de estudar, ainda não. Arrependeu-se de ter querido ser adulta muito cedo. Tinha a consciência de que isso a tornou uma mulher seca. Mas não pensava nisso. E tinha momentos de alegria. E sabia retirar prazer do seu trabalho. Fazer as coisas bem realizava-a.
Na fábrica era uma excelente operária. As suas colegas eram também boas operárias. Algumas raparigas da sua idade não conheceram outra vida senão a da fábrica; uma delas estava lá desde os seus sete anos. Só passados muitos anos é que percebeu a razão porque era dispensada, juntamente com outras colegas, alguns dias do ano, quando iam uns homens de uma tal de Inspecção Geral do Trabalho. A Joana trabalhava na montagem das teias; controlava a inserção dos fios nos olhais dos liços e verificava as remissas, controlava também a inserção nas puas e a tenção da teia. Mas conhecia todo o processo de confecção de um tecido; as ordens de tecelagem, o controlo das lançadeiras, o controlo do bater do pente, o remate, os vários processos de acabamento. Na fábrica só se trabalhava a lã, fibras acrílicas e algodão. Tinha aprendido a trabalhar o nylon, mas o patrão acabou por vender o equipamento porque não quis investir na tecnologia de obtenção do fio que tornaria, a médio prazo, o processo mais barato. O patrão era muito dado a requintes, no entanto não passava de um imbecil que herdara a fábrica e que continuava a fazer exactamente o mesmo que o pai fazia desde os anos 50: receber lã de Inglaterra ou da Austrália, produzir os tecidos segundo padrões ingleses, colocar auréolas que diziam “made in England”, por vezes “made in Germany”, e enviar a preços baixíssimos para as empresas inglesas.
No início as trabalhadoras achavam piada ao verem nas lojas o produto do seu trabalho vendido como fazenda inglesa, Mas depois começaram a revoltar-se contra o fabrico daquelas auréolas e chegaram mesmo a pensar boicotar. Não seria difícil; bastava pedirem a alguma das desenhadoras, que trabalhavam num gabinete dentro da fábrica, que alterasse a ordem de tecelagem daqueles poucos fios tecidos em damasco ou com uma teia dupla, para que o resultado em vez de ser “England” fosse “Portugal”. Bem se arrependeram mais tarde de não o terem feito.
Joana gostava de andar pelo armazém da fábrica onde se empilhavam milhares de bobines de fios coloridos; laranjas, verdes, azuis, castanhos, amarelos, vermelhos. O trabalho era duro, principalmente no verão, manejar a lã e a fibra acrílica tornava-se um suplício. Mas o resultado enchia-a de uma contida felicidade: cumprir mais uma encomenda. As operárias da fábrica falavam das encomendas e da obrigação de cumprir prazos com mais zelo que o patrão. Elas tinham bem presente o tempo de trabalho necessário para cada tarefa, sabiam na perfeição quanto lucrava o patrão por cada hora de trabalho sua. O trabalho na produção em médias ou grandes fábricas confere essa consciência aos trabalhadores; enquanto desempenham tarefas repetitivas começam a fazer contas ao número de vezes que repetem cada operação; ao número de peças que produzem, ao número de horas que trabalham, ao preço a que são vendidos os seus produtos, ao custo de cada mercadoria. Mas ele gostava de se pavonear, de vez em quando, por entre os teares dispostos em duas filas ao longo de um grande armazém, e de rispidamente ordenar que trabalhassem sem se distraírem. Tinha de gritar, os teares em laboração são muito ruidosos e muitas das operárias iam ficando surdas. As mulheres mais velhas já não lhe davam grande atenção; algumas delas lembravam-se dele garoto a atrapalhar o trabalho. As mais novas tremiam com medo. Uma delas chegou a urinar pelas pernas abaixo porque ele insistiu que ela queria era fazer gazeta. Ela sentiu-se humilhada. As colegas odiaram-no ainda mais.
A fábrica era a vida da Joana e das suas colegas. Por aquele trabalho ela tinha feito um aborto aos dezassete anos. Algumas das operárias tinham filhas e cunhadas ali empregadas, umas poucas os maridos. A fábrica era, à semelhança de muitas outras do género, o sustento da maior parte da gente naquela terra. Os próprios cafés, a mercearia, o talho, o supermercado, o cabeleireiro, a escola e até mesmo a florista viviam em torno da fábrica. Antes da fábrica vivia-se da agricultura e a pequena vila não tinha quase nada. Depois cresceu, algumas das pessoas que trabalhavam no campo tornaram-se operárias e os fios dos teares entrelaçaram-se com as veias daqueles habitantes.
Entretanto começaram a ouvir-se notícias das “deslocalizações” de outras fábricas para sítios onde a mão-de-obra era mais barata. O patrão usava desse argumento sempre que se discutiam aumentos de salários. Algumas das trabalhadoras tornaram-se mais medrosas. Ele falava na impossibilidade de manter o posto de trabalho de todas, e lamentava. Tudo em nome da competitividade. Os delegados sindicais lembravam as contas e até se faziam contas em grupo. O lucro continuava a existir. O patrão continuava a conduzir o seu reluzente BMW pelas estradas esburacadas e enlameadas da vila. Continuava a habitar num monstruoso casarão cheio de mármores e com uma sumptuosa piscina. Mas a liberalização do mercado dos têxteis à China foi o que despoletou a decisão final.
Naquele dia o bolo de anos soube-lhe mal. Toda a vila se enlutou e até o padre na homilia lamentou. E as operárias sentiram que lhes retiravam o ar para respirar. Sentiram-se injustiçadas: que culpa tinham aquelas mulheres das relações macroeconómicas? Tinham a certeza da qualidade e da necessidade do seu trabalho. Sabiam que com melhores máquinas e melhor formação podiam fazer tecidos ainda melhores, mas que o patrão nunca lhes deu ouvidos. Sabiam que havia gente sem dinheiro para se agasalhar. Sabiam que podiam ter sido tomadas medidas para que os seus produtos fossem preferenciais no mercado português. Sabiam que as operárias chinesas, e as operárias do leste europeu também passavam dificuldades. Reviram, cada uma delas, a sua vida e o que poderiam ter feito para evitar o encerramento da fábrica. Imaginaram o negro futuro. Famílias sem sustento, a vila sem vida e a vida sem sentido.
Não quiseram que o desespero e o sentimento de impotência tomassem conta delas. Reuniram-se ali mesmo entre as bobines coloridas e, pela primeira vez, com as máquinas em silêncio e decidiram: “Não saí nem um liço!”. E todos e todas, sem excepção, desde as operárias, ao pessoal da tesouraria, da manutenção, do desenho, montaram um acampamento em frente ao portão por onde a Joana tantas vezes entrara a chupar uma azeda.
A televisão que chegou para o enterro. Nunca referiu uma só palavra sobre a dedicação ao trabalho e a competência daquela gente. Não ouviu as razões que levaram aquelas mulheres a aderirem à greve geral. Preferiu passar os telediscos da Shakira do que a linda voz da Marta (uma das trabalhadoras). Mostrou inúmeras vezes o talento do Cristiano Ronaldo e nunca se referiu à precisão das cerezideiras portuguesas. A câmara procurava a dor e a angústia e pela frente apareceu a Joana gritando: “Daqui não arredamos pé! A fábrica é nossa! Nós sabemos como a por a trabalhar e não vamos deixar sai nada de lá de dentro!”.
1 comentário:
Quem acompanhou tão de perto a luta da Sorefame não tem dificuldade em escrever uma prosa como esta. Gostei muito do texto. Tem sentimentos, ideais, sonhos, e tem o processo de consciencialização. É um processo muito complexo, que muitas vezes é temporário, pois a ideologia dominante prevalece após alguns momentos de rebeldia da consciência. Noutras alturas, os trabalhadores surgem para a luta quando se pensava que aquela chama de uma luta distante tinha desaparecido. Este processo é lento. Tem muitos passos atrás. Mas nós cá estamos para ajudar os trabalhadores a dar os passos em frente. Um abraço comunista, João
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