A vida e a dignidade
A demagogia e a hipocrisia dos defensores do Não à despenalização da IVG (Interrupção Voluntária da Gravidez) repugnam-me. É raro ouvir um adepto do Não assumir que é favor da repressão das mulheres que praticaram algum aborto… e, no entanto, é isto que está em causa.
Infelizmente esta tem sido sempre uma discussão levada para o terreno das convicções religiosas e não no das opções políticas. Uma discussão em que os partidários do Não esquecem que hoje é unanimemente reconhecido que o Direito é uma convenção normativa das pessoas e não um mandato divino.
Entenda-se a este propósito que “pessoa” é um vocábulo que vem do latim persona, que significa máscara, figura ou papel representado, querendo assim dizer que se trata de uma construção cultural. Pessoas são então os seres que colectivamente se reconhecem como tal.
Direitos, por outro lado, são regras de interacção estabelecidas entre as pessoas em prol da harmonia e da preservação da integridade de todos. São portanto estabelecidos pelas pessoas e para as pessoas. Não são inatos, nem podem ser atribuídos a não pessoas. É uma falácia falar-se em direitos dos animais, ou das pedras, ou das plantas. O que é correcto, isso sim, é a razão dos homens levar ao reconhecimento de que o equilíbrio do planeta (incluindo o económico e social) é um benefício comum e que, portanto, a actuação das pessoas deve garantir este equilíbrio.
É portanto pelo interesse comum e por afecto que se defende a vida. E quem genuinamente a defende sabe que o valor da vida é inalienável da dignidade e da integridade. Quem genuinamente a defende fá-lo por humanismo, por motivos tanto racionais como emocionais. Fá-lo por auto-preservação e empatia.
Empatia que, por definição, nunca pode ser apenas com a vida biológica, mas tão-somente com os sentimentos inerentes a essa vida. Daí que, o argumento da defesa da vida tout court não passa de uma rotunda e gigantesca hipocrisia.
Como se pode ter empatia com um embrião e ao mesmo tempo desprezar o desejo da mulher? Como se pode empreender uma cruzada pelo sucesso biológico de um óvulo fecundado e apontar a espada a adolescentes que se vêem na situação dramática de terem engravidado sem ainda estarem, elas próprias, completamente formadas? Como se pode afirmar que se defende a vida e ao mesmo tempo ignorar as condições de vida das mulheres que não têm como alimentar mais um entre muitos filhos? Como se pode tornar absoluto o valor da vida e mandar para a prisão as mulheres que com sofrimento declararam a elas próprias e com muita dor que, pelas mais variadas e dolorosas razões, não podiam ser mães? Como se pode berrar pela vida humana e alimentar rancor contra aquelas que a geram e em cujas mãos fica o destino dessa outra cuja dor é infinitamente menor?
Não se pode.
E a verdade desta resposta dá-nos a realidade e a crueza dos números.
Há pouco mais de dez anos atrás, ouvimos da boca dos que cantaram vitória, a triste vitória de se manter na clandestinidade (com todas as consequências sanitárias e psicológicas que isso acarreta), promessas infindáveis de uma luta incansável pela melhoria das condições sociais e económicas do país, declarações comoventes de compreensão e ajuda às mulheres que não reunissem condições para levar avante uma gravidez indesejada.
Hoje, encerram maternidades e escolas por todo o país, o desemprego aumentou, a legislação laboral tornou-se numa arma de escravização dos trabalhadores, o pacote laboral deu carta branca a patrões para despedirem trabalhadoras grávidas, os pais trabalham mais horas e as escolas tornaram-se em depósitos de crianças, depósitos de futura mão-de-obra barata e descartável (assim como a dos seus pais), a violência e a delinquência juvenil aumentaram, o abandono escolar aumentou também, reduziu o poder compra, diminuíram as condições de acesso aos cuidados de saúde. Tudo quanto diz respeito a garantias da qualidade de vida é visto apenas na óptica das despesas: protecção social é despesismo, gratuitidade do acesso à saúde é despesismo, educação é despesismo, igualdade no acesso à justiça é despesismo; direito à habitação é despesismo, etc. Até já se contabilizam financeiramente os gastos que os serviços públicos de saúde venham a ter para assegurar as IVG!
Em suma; a vida humana, neste país, perdeu valor.
Ter-se-ão feito, desde a “vitória” do Não, cerca de 200 mil abortos clandestinos, realizados, na maior parte dos casos, em casas particulares, sem auxílio de um médico, sem os cuidados essenciais e com consequências negativas para a saúde e extremamente dispendiosos.
E os defensores do Não? Vimo-los na linha da frente a defender a melhoria das condições de vida dos portugueses e na linha da frente contra as políticas desumanas dos governos que então se sucederam? Não.
O que vimos foi, entre outros atentados aos portugueses, Bagão Félix, defensor do Não, ser o pai do desumano código laboral, como apoio de outros fervorosos católicos defensores do Não: João Salgueiro, Jardim Gonçalves e Teixeira Duarte
É certo que alguns, como a JOC, lá vão dizendo que não estão satisfeitos. Mas e a grande batalha, essa sim, pela vida? Pela vida de todos os dias? Pela vida escolhida? Pela vida livre? Pela vida que merece ser vivida? Pela vida que ser quer para nós e para os outros? A grande batalha que se trava sem demagogia e correndo riscos?
Essa batalha quem a trava são os que agora são acusados de ser contra a vida.
Entretanto, sempre que há um julgamento de mulheres que abortaram calam-se os “paladinos” da vida e, praticamente, não se conhecem casos de denúncia. Porquê? Porque na hora da verdade, com os seus casos pessoais ou de gente próxima, sabem que a vida humana não se pode dissociar da sua dignidade.
Se realmente de tratasse de um assassinato não denunciariam?
Contudo, noutros momentos, arvoram-se em grandes soldados do embrião porque são incapazes de nutrir pelas pessoas desconhecidas o mais pequeno sinal de compreensão, não têm empatia, não têm coragem, são desumanos.
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