sexta-feira, junho 29, 2007

Viagem a Euskal Herria 2

O comboio II


Encostámo-nos ao balcão do bar e pedimos duas cervejas. O senhor Manuel (achim che aprejentou), com um grande sorriso, deu-nos logo permissão para nos sentarmos no restaurante. Que maravilha! Desde que iniciara a viagem que não me sentia tão bem: lugares confortáveis, clima agradável e uma luzinha encrustada na mesa que dava um ambiente SPA à coisa. A M. claro, corrosiva como é, observa que aquilo é coisa dos anos 70 – toalhinhas azul cueca e paredes cor-de-laranja, cartazes amarelecidos do tempo da Maria Cachucha e mobiliário antigo. Mas depois rematou: “É giro!”. Pois claro, não seria de esperar outra coisa da miúda que se veste vulgarmente com batas da senhora da limpeza (sem desprimor para as senhoras e para o seu gosto em batas).

Passámos a fronteira a tragar uma super-bock em copos de vinho. Não nos chatearam com perguntas persecutórias como eu, num delírio conspirativo, já estava a imaginar.

Depois juntou-se a nós o Jorge, o revisor.

Como é proibido fumar nas cabines e no bar-restaurante, fomos até ao corredor para um cigarrinho. Com ar de espanto e gozo dizem-nos que é proibido fumar em qualquer parte do comboio dentro do estado espanhol, piscam-nos o olho e acrescentam que vão fingir que não viram. Mas depois mudam de ideias e convidam-nos para ir fumar para a cozinha do comboio. E lá fomos! Conhecemos assim o senhor João, o cozinheiro (ver foto): um homem que anda há décadas nesta vida. Um dos melhores cozinheiros do mundo, exagera o Jorge, um verdadeiro pai, o homem que impõe a ordem naquela casa sobre carris. Confesso que nunca imaginei que o cozinheiro fosse a pessoa mais importante dentro de um comboio. Mas pudemos observar que, efectivamente, era ele quem orientava o rumo das coisas (se é que é possível orientar mais ainda o rumo de um veículo que anda sobre carris). O senhor João, de Mem-Martins, nascido no Fundão, terra das cerejas, marido de uma senhora que tem uma boutique num centro comercial, pai de dois filhos que estão no ramo bancário, avô de uma data de gente, deu um avental à M. e um pano a mim e disse-nos que podíamos lavar a loiça. Eu estava pronta para a tarefa, mas entretanto o trio das criaturas do comboio observou que a loiça tinha de ficar a repousar num banho de água quente e lixívia. Em alternativa obrigaram-nos a comer. Começaram por propor peixe e arroz, Acabamos por comer apenas a torta (caseira) e o suminho.

Passámos depois a um ambiente mais repousado: fomos conhecer os compartimentos de cama destinados ao pessoal. Sentadas em confortáveis poltronas e eu fascinada com as maravilhas do design de equipamento (que consegue meter num espaço de 2cx1,5lx3a três camas, um sofá, um lavatório disfarçado, um banco, armários vários e cabides) tragámos vinho do Porto e por pouco não éramos cobertas de tabletes de chocolate e amendoins.

Tamanha hospitalidade estava a assustar-nos e pouco depois de Ciudad Rodrigo voltámos para a nossa cabine.

Tentámos dormir o melhor que conseguimos. Eu, encostada à janela, adoptei a estratégia de esticar a perna esquerda sobre o aquecedor do comboio até quase à cara do miúdo, abrir as pernas e esticar a direita contornando um saco enorme que a mãe da criança pousara no chão, inclinar um pouco o rabo para a direita e encostar a cara ao cortinado: uma maravilha! Quando me cansava encostava a perna direita à esquerda e inclinava a cabeça para o outro lado ficando com a cara voltada para a M. A M. que estranhamente conseguia dormir de costas direitas e pernas encolhidas.

Gasteiz - as primeiras horas

Chegámos ao nosso destino dois minutos antes da hora, às 4h22. Saímos na expectativa de vermos correspondido o nosso desejo de uma ampla comissão de boas-vindas apetrechada de passadeira vermelha, bailarinas e homens cantando vestidos de branco, iguarias e vinho. Sabíamos, no entanto, que os nossos sonhos não seriam atendidos e que tinha calhado a uma rapariga a sorte acordar a meio da noite para nos ir buscar. Para nosso grande espanto não havia ninguém à nossa espera. Eu e a M. começámos a ponderar ir andando a pé até à sede da Askapena (ver foto) (percurso que eu havia decorado olhando o mapa para a eventualidade de ninguém nos vir buscar à estação). Não tínhamos ainda terminado esta precipitada exposição de ideias e vimos uma rapariga vir na nossa direcção em passo ofegante e a acenar-nos. Era ela: a A.

Chegou pontualmente, às 4h24.

Feitas as apresentações, a A. explicou-nos que iríamos passar o resto da noite na sua casa que ficava nas proximidades. Já a caminho encontrámos grupos de pessoas que andavam a queimar os últimos cartuchos da noite animada das festas de Judimendi (um bairro de Gasteiz). O primeiro bêbado que vimos, e isto há-de ficar-nos gravado na memória, gritou: “Viva Franco!”.

3 comentários:

silêncio disse...

quem leia isto, achará que és simplesmente louca e que nada é verdadeiro...
a ideia assustadora de ficar em gasteiz de madrugada com o frio que estava dissipou-se com aquele 'viva franco'.

e eu gostei muito da carruagem-bar e respectiva decoração! faltava era um toque feminino ali.

Maçã de Junho disse...

Bonito blog camarada!
Voltarei com mais calma!

Até amanha camarada!

M

Anónimo disse...

Carta aberta à blogosfera portuguesa
http://compapasebolos.blog.com/