Mega-Processo 18/98 ou a dignidade dos bascos
Na passada sexta-feira, dia 30 de Novembro e até hoje, 3 de Dezembro, a polícia espanhola deteve 38 dos 46 cidadãos bascos arguidos no denominado mega-processo 18/98, ainda que a sentença do julgamento só esteja prevista para dentro de semanas.
Depois do aparatoso encarceramento de 23 membros dirigentes do Batasuna no passado mês de Outubro, esta foi a mais mediática das operações levadas a cabo pelo estado espanhol e serve como uma luva a satisfação de uma estratégia política de conquista da direita espanhola. É tempo de se dar provas. As eleições estão próximas.
Mas estas prisões, a somar às centenas que se têm produzido nos últimos tempos (em média duas por dia) são mais do que a demonstração do governo PSOE da sua fidelidade à direita, fazem parte de um continuado processo de censura, perseguição e agressão à esquerda independentista basca.
Importa aqui esclarecer que o mega-processo 18/98 não é uma única peça judicial mas um conjunto de processos que, guiados pela mesma matriz, cumprem os mesmos objectivos. Foi o próprio juiz Baltasar Garzón que entendeu coligir a matéria em questão de forma a tratá-la como um todo. Em todos eles se identificam as seguintes características:
- Uma mesma linha de argumentação e uma tese comum – a de que todas as pessoas, organizações, associações e partidos envolvidos pertencem à ETA.
- Uma tipologia dos presumíveis autores dos “delitos” praticados - Todas elas pertencem a organizações políticas ou organismos populares de diferentes âmbitos: comunicacional, social, político, cultural, em torno da defesa dos direitos humanos.
- A iniciativa ou o impulso da actuação e a responsabilidade da instrução e investigação. Exceptuando o processo sobre Egunkaria todos os casos foram levados ao tribunal pelo Juiz titular do Tribunal Central de Instrução Nº 5 da Audiência Nacional espanhola, Baltasar Garzón.
- Os procedimentos judiciais não encontraram provas incriminatórias sobre os delitos a que se referem, cuja autoria permanece desconhecida. Esses procedimentos são apenas de interpretação policial condicionada e muitas vezes incorrecta dos abundantes documentos.
Desde cedo, devido ao conjunto de atropelos e ultrapassagem de procedimentos normativos, à arbitrariedade, falta de rigor e isenção, ficou evidente que não se estava perante o poder judicial mas antes de uma evidente vontade política, atempadamente denunciada e provada. São de destacar alguns episódios e actuações:
- Em diversos dos casos apresentados ao tribunal, a 4ª Secção da Audiência Nacional Espanhola produziu autos que deram por infundamentadas ou despropositadas as acusações realizadas. No processo referente à associação europeia Xaki o tribunal conclui: “é claro, e assim o reconhece este Tribunal, que nenhuma aparência de ilicitude apresentam, enquanto tais, os fins da Associação Europeia Xaki, sendo uma associação que actua publicamente e que se encontra legalmente constituída”. “Prestar assistência jurídica ou sanitária aos deportados no estrangeiro, realizar acções para evitar que prosperem as petições de extradição, criticar o sistema legal espanhol, promover o reconhecimento internacional do direito de auto-determinação, e inclusive, difundir dentro e fora de Espanha a denominada Alternativa Democrática de Euskal Herria, são condutas que, por si, carecem de significação criminal, independentemente de serem realizadas por uma pessoa individual ou, conjuntamente, por várias pessoas associadas a tal fim.”
O governo espanhol (na altura encabeçado por Aznar) declarou publicamente que considerava “ especialmente grave” a decisão deste tribunal e mostrou-se convencido que era “muito difícil de entender por parte da sociedade espanhola”. Estava-se perante uma clara pressão, exercida pelo governo, sobre o poder judicial e assim, o próprio juiz Garzón encarregou-se de contrariar as decisões da referida secção e declarar a suspensão da associação enquanto “estrutura integrada na ETA”.
A continuada pressão dos poderes do estado espanhol sobre o tribunal acaba por sortir efeito e esta começa a produzir autos contraditórios (como o que se refere a Ekin) e mais tarde os seus magistrados acabam por ser destituídos.
- No caso da Fundação Joxemi Zumalabe, a nova secção da Audiência Nacional decide criminalizar a desobediência civil, um método clássico de oposição e resistência pacífica característico de um estado democrático, e integrá-la, uma vez mais, como parte de um aparelho altamente elaborado dirigido pela ETA.
- No que se refere aos jornais, o juiz Baltasar Garzón desenvolve a teoria de que ao tecerem críticas a determinadas pessoas ou entidades os jornalistas estão a assinalá-las como alvo de ataque da ETA, logo integram a organização.
- Ao longo do processo vários arguidos referiram e demonstraram terem sido alvo de tortura durante os períodos de incomunicabilidade. Alguns foram inclusive hospitalizados. O tribunal ignorou estas acusações e considerou os relatórios e as “perícias” produzidas nessas circunstâncias.
- Também o julgamento, propriamente dito, foi repleto de situações que mancham e destroem o próprio conceito de justiça – desde a juíza declarar que não se interessava pelas resoluções do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, passando pelo impedir o uso da palavra aos acusados, o negar aos advogados de defesa o acesso à documentação do processo (5 tomos, cerca de 100.000 folhas), até ao permitir que um polícia prestasse declarações em vez do citado no processo.
Apesar de toda esta informação ser, com relativa facilidade, acessível a qualquer cidadão, a comunicação social portuguesa dita de referência, distraída e acrítica, nas vésperas e no dia em que se assinalam 367 anos da restauração da independência nacional, prestando vassalagem ao poder dominante no estado espanhol, publica sobre os acontecimentos de 30 de Novembro as seguintes notícias:
“(…)envolve investigações a pessoas próximas da organização terrorista basca ETA” SIC Online
É escusado perguntar ao autor da peça se conhece os aspectos particulares do processo para produzir uma afirmação destas. A resposta, obviamente, é não. Contudo não se coíbe de dizer aquilo que não sabe.
“A Justiça espanhola emitiu hoje mandados de captura contra 46 membros de organizações separatistas bascas suspeitas de ligações à ETA.”
O Público começa por ser mais cauteloso mas acaba por revelar também falta de rigor e verdade jornalística:
“Estes elementos estão entre os arguidos do maior processo organizado em Espanha contra estruturas ligadas à rede da ETA” Publico.pt
“As pessoas alvo destes mandatos de detenção fazem parte de um conjunto de 52 arguidos do processo 18/98, que investiga entidades e organismos ligados À ETA.” Correio da Manhã
“Ordem para pender etarras
Carlos Roldán Martín, Correspondente em Madrid
A Audiência Nacional de Espanha ordenou, ao meio dia de ontem, a detenção de 46 dos 52 envolvidos no processo 18/98 contra a "Ekin", a estrutura da ETA que sustituiu à Koordinadora Abertzale Socialista (KAS), encarregada da estrutura económica, das relações internacionais, mediáticas e políticas da ETA. Até ao fecho desta edição, a Polícia e a Guarda Civil tinham já detido 20 pessoas, entre as quais se destaca Xavier Alegria, líder da KAS.” Jornal de Notícias
Carlos Roldán Martín adianta pormenores cometendo imprecisões e apresentando como verdade a tese delirante de Garzón.
“Numa ordem emitida ao início da tarde, a Audiência Nacional ordenou a detenção de 46 dos 52 arguidos do processo conhecido como 18/98, que investiga entidades e organismos ligados à organização terrorista ETA.
As detenções foram ordenadas perante «o elevado risco de fuga» depois dos juízes terem finalizado as suas decisões sobre o processo, cuja sentença deverá ser conhecida no próximo dia 10 de Maio.” Diário Digital
O Diário Digital nem se apercebe do erro grosseiro que cometeu. Adia a decisão do tribunal por 6 meses e não questiona o exagero na antecipação da prisão preventiva.
Outros como o Diário Digital dão a mesma “informação”; que “o elevado risco de fuga” determinou a antecipação da prisão.
Nenhum terá lido a declaração que os acusados fizeram em Fevereiro deste ano: “vamos ser condenados pela nossa militância política, e estamos orgulhosos”. Se a tivessem lido e com um pouco de cabeça saberiam que alguém que em Fevereiro tem consciência que vai ser preso e quer fugir não espera por Dezembro.
Poderão responder que apenas reproduziram o que vinha de uma nota de origem provavelmente ligada às autoridades espanholas (mas que nem se dão ao trabalho de identificar). E assim vão fazendo o seu trabalho, o de serem a voz do dono: nada questionando, nada investigando, aceitando tudo o que venha das fontes “oficiais” e vestindo a hipócrita farda da isenção.
Em Junho tive a oportunidade de conhecer muitos destes homens e mulheres bascas agora arguidos num processo que lembra os autos de fé da idade média. Encontravam-se “aquartelados” em Guernica. Aí se concentraram numa chamada de atenção para a sua situação. Não encontrei traços diabólicos, criminosos ou terroristas em nenhum deles. Apenas gente empenhada nas suas causas sociais, culturais, políticas, e revoltada contra a arbitrariedade, contra o abuso e a tirania do poder. Gente comovida com a nossa atenção e que de tanto quererem explicar a sua situação já não encontravam palavras. Gente solidária e patriótica. Ali encontrei um pescador que conhecia todos os portos de pesca portugueses, um jornalista que ao falar parecia declamar poesia, um advogado que era um exímio cozinheiro. Gente simples.
Gente simples esperando uma sentença de 15 anos de prisão.
E não, não fugiriam.
Enquanto escrevo estas linhas já se encheram as ruas de Bilbao com dezenas de milhar de pessoas numa gigantesca manifestação de solidariedade com esta gente simples e de revolta contra esta opressão exercida sobre o povo basco. Notícias sobre isto? nenhumas

1 comentário:
A justiça triunfará!!
Gostei tanto deste artigo que tomei a liberdade de citar uma parte no meu blog!
Tu cada vez escreves melhor RapVermelha!!
Beijinhos
;-)
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