Há 100 anos mataram o rei
100 anos depois do regicídio ouvem-se vozes bafientas de um saudosismo hipócrita defender e reclamar o regresso à monarquia. Por outro lado, a desinformação, o desespero e a falta de perspectivas levam muita gente a considerar essa hipótese como válida. É necessário recordar que na génese da monarquia está uma sociedade estratificada, hierarquizada, incompatível com a democracia e a igualdade. E é também importante refrescar a memória e lembrar que o penúltimo rei de Portugal, nutria um profundo desprezo pelo seu povo que, esmagadoramente, vivia em condições deploráveis e desesperantes enquanto ele, D. Carlos, esbanjava os dinheiros públicos. É necessário lembrar que esse mesmo rei deu carta branca a um ditador que levou a economia portuguesa ao colapso. E é fundamental sabermos que 101 anos antes outro rei abandonou o seu povo fugindo das invasões francesas. E que a história da monarquia é a história do velho, ultrapassado e obsoleto regime da subjugação. A solução passa por olhar em frente.
A propósito desta data transcrevo aqui excertos de um livro do controverso Miguel Unamuno. Um intelectual que se iludiu e tomou o partido errado, mas que meses antes de morrer proferiu a famosa frase "vencereis mas não convencereis" que lhe custou a expulsão por Franco do seu cargo de reitor da Universidade de Salamanca.
Do livro PORTUGAL, POVO DE SUICIDAS
"O Rei D. Carlos (…) não precisava de João Franco para atrair a si o ódio do seu povo. Nem na outra, assim Era quase unanimemente execrado. Tinha conseguido unir os seus súbditos num sentimento comum a seu respeito; de ódio misturado com desprezo. Está correcto que de todos os lados a imprensa tenha condenado o assassínio; assim o pede a moral que professamos com maior ou menor sinceridade; mas como penso que acima de todos os amores se deve colocar o amor à verdade, tenho de dizer que os tiros sobre o rei partiram das próprias entranhas do povo português. E se a execução do Rei D. Carlos é execrável, é-o como é a execução de qualquer réu. D. Carlos estava julgado e condenado pelo seu povo.
Estive por diversas vezes em Portugal. Convivi com muitos portugueses e a nenhum ouvi alguma vez defender o defunto rei. Não tinha, em rigor, um único partidário. Contavam-se a seu respeito coisas execráveis e horrendas. Ouvi a pessoas que com ele trataram, até a um que foi seu ministro, coisas realmente incontáveis em público. Oliveira Martins (…) deixou o Ministério dizendo que o rei era um monstro de perversidade. Há que ouvir contar as circunstâncias que precederam o suicídio de Mouzinho de Albuquerque, o herói de África, que ao regressar do seu governo colonial, rodeado de um imenso prestígio, foi nomeado preceptor dos filhos do rei e acabou por suicidar-se.
Talvez a história algum dia venha a guardar alguma coisa de tudo isto (…) e a julgar D. Carlos.
Mas de entre as muitas coisas, todas elas vergonhosíssimas, que ouvi acerca do infeliz monarca, a que porventura se me afigura mais grave, se bem que de um ponto de vista moral recorrente possa aos outros não o parecer, é que ele desprezava o seu povo. O pecado mais grave de D. Carlos, o seu pecado imperdoável, é que desprezava Portugal. Costumava dizer, falando da pátria onde reinava: Isto é uma piolheira. E assim como o Evangelho diz que pecados contra o Espírito Santo não têm remissão nem nesta vida nem na outra, assim é pecado irremissível o desprezo de um soberano pelo seu povo. A circunstância de não ser um homem privado de inteligência ou sequer vulgar, agrava a sua culpa a esse respeito. O defunto D. Carlos não era um idiota nem se pode dizer que fosse uma inteligência vulgar. O que ele foi sempre foi um egoísta astuto e um desenfreado gozador da vida.
E este desgraçado monarca fez uma espécie de pacto com João Franco, o ditador (…)
O pacto consistiu em que Franco daria ao rei aquilo que este necessitava, ouro, justificando de uma ou de outra maneira os adiantamentos ou antecipações ilegais do Tesouro Público e aumentando-lhe a lista civil, e o rei daria a Franco o que a este apetecia com frenesi de monomaníaco: o poder.
Porque o apetite de poder que atingira Franco era uma verdadeira loucura. (…) cabe dizer que o lema de Franco era: conserva o poder, honradamente se puderes, mas conserva-o.
(…) Para lograr levar a cabo esses seus supostos bons propósitos havia um grande obstáculo, que era a própria causa do poder: ter transigido com as artimanhas do rei. É difícil cimentar uma administração honrada com um poder que deve a sua origem a uma violação da estrita honradez pública.
Franco cometeu imensos atropelos para reduzir o montante das dívidas do rei. E chamar-lhes dívidas é o menos que se ode dizer…
(…)
E ambos, o rei e o seu ministro, desconheciam o seu povo. O que nada tem de estranho, visto que o desconhecia – e continua talvez a desconhecer – a maior parte dos portugueses europeizantes ou europeizados (…)
O povo português tem, como o galego, fama de ser um povo sofrido e resignado, que tudo suporta sem protestar, a não ser passivamente. E, no entanto, há que ter cuidado com povos como esses. A ira mais terrível é a dos mansos.
Nem me espanta que no complexo sentimento produzido pela notícia do regicídio, na alma dos portugueses aqui imigrados, entre em não pequena medida algo de orgulho nacional. Condenavam a execução, mas pareciam querer dizer: “ vejam do que ainda somos capazes”. Um destes imigrados, ao ler nos jornais que um dos regicidas era espanhol, deixou escapar este desabafo: “não, não, eram todos portugueses, tenho a certeza”.
Sem qualquer cumplicidade no acto, ainda que remota, ao serem surpreendidos pela notícia, orgulhavam-se de que na sua pátria tivesse havido homens com a coragem suficiente para levar a cabo essa execução terrível, da maneira como o fizeram, cara a cara e expondo-se (…)
Portanto, nem o Rei D. Carlos nem João Franco conheciam o seu povo. E aquele demonstrou cabalmente não o conhecer nas suas famosas declarações ao redactor de Le Temps, declarações que constituíam uma verdadeira provocação à mansidão de um povo. Este dormia e rei e ditador despertaram-no.
É muito doloroso mas o certo é que a consciência dos povos adormecidos só desperta com actos de violência. E é ainda mais doloroso porque no comum dos casos não chega um abanão apenas; o dormente volta a adormecer, embora de um sono mais ligeiro e necessita de nova excitação.
Mas pondo de parte o caso concreto, há que reconhecer todo o trágico da escravidão de um monarca.
Um presidente do Conselho de Ministros, um presidente da República, é um homem que se dedicou à política, escolhendo com mais ou menos consciência e determinação essa profissão; é alguém que procurou o lugar, apresentando a sua candidatura ou deixando que outros a apresentassem. Um rei, não. Um rei é um escravo de nascimento que, como quase todos os nascidos em escravidão, não têm força de vontade nem lucidez para se libertar das cadeias com que nasceu.
Não seria terrível obrigar os filhos mais velhos a seguir a profissão de seus pais? Não consideraríamos que era uma tirania intolerável.
(…) Se bem que o regicídio seja considerado um crime, há que reconhecer que a maior parte das vezes é um crime de direito público, não de direito privado.
E neste caso concreto do regicídio de D. Carlos não se deve perder de vista que foi levado a cabo num país com Portugal, onde a pena de morte foi abolida há já algum tempo e onde chegou a haver distúrbios públicos para impedir que se executasse um condenado a ela. É mais uma prova do que é a ira do manso.
Nesse povo brando, pacífico, sofrido e resignado, mas por dentro cheio de paixão, os crimes de sangue são raros, muito raros, raríssimos; mas entre os que ocorrem muitos parece haver que são mais atrozes e violentos do que aqui, em Espanha, onde por desgraça tais crimes são mais frequentes, muito mais frequentes do que lá.
(…)"
Fevereiro de 1908
3 comentários:
Isto que está aqui escrito está completamente, como se costuma dizer "outdated". É um facto actual que o rei D.Carlos não foi um mau rei, investigações actuais demonstram isso.
Antes pelo contrário, Peter. Aquilo que o Unamuno escreveu foi "up to date" quando o escreveu. As barbaridades que se têm dito e escrito,em 2008, sobre o regicídio é que parecem não ter em conta o espírito da época. Podendo ter a vantagem de olhar para trás no tempo de uma forma mais objectiva, pecam por não contextualizar de forma apropriada. O texto do Unamuno, embora escrito pouco tempo depois do regicídio, tem um tom muito objectivo, que advem, por ventura, por ter sido escrito por um estrangeiro que conhecia bem Portugal. Ainda hoje a análise do francês Alexis de Toqueville, «Democracia na América», é considerada uma das melhores descrições da América da época. Agradeço desde já à Rapariga Vermelha por ter desenterrado esta 'pérola'.
não foi um mau rei? que raio de investigações são essas? o rei não esbanjava dinheiros públicos? o rei não afirmava as coisas mais hediondas sobre o seu povo? o rei não deixou que um ditador reprimisse o seu povo e o deixasse na miséria?
... cheira-me a mais uma das limpezas da História, como aquelas que dizem que foi Salazar que esteve nos bastidores da fuga de Álvaro Cunhal da prisão.
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