terça-feira, março 18, 2008

Democracia à portuguesa - um texto atrasado

“Os professores ainda não compreenderam”, dizia Maria de Lurdes Rodrigues com a sua máscara cândida e de quem parece transportar às costas uma cruz de sacrifício e abnegado labor em prol da nação. Ou a “bem da nação”, como se dizia noutros tempos. Cerca de 100.000 docentes, de acordo com as afirmações ministeriais, não terão ainda atingido a genialidade política que consiste em transformar a educação portuguesa na melhor do mundo através do encerramento e privatização de escolas, da diminuição dos apoios sociais aos estudantes, da liquidação do conceito de escola inclusiva, do arrasar da gestão democrática e a instauração (ou restauração) do Senhor Reitor todo-poderoso e centralizador, mão do poder nas escolas para tornar tudo e todos em máquinas de servir os desígnios e interesses de uns poucos, da subjugação dos conteúdos científicos e das estratégias pedagógicas ao financismo, ao mercantilismo e à lógica de que todo o investimento que não vise o lucro imediato e privado é um despesismo, da divisão da classe dos professores, do desrespeito pelo papel do professor – retirando-lhes a sua autoridade e atribuindo-lhes tarefas cada vez mais distantes do seu conteúdo funcional -. Uma genialidade tão profunda que só raras mentes iluminadas são capazes de vislumbrar os resultados, uma genialidade que dispensa o património de experiência e vivência directa da realidade de milhares e milhares de professores e educadores, uma genialidade capaz de ignorar a insatisfação generalizada nas escolas.

Sim, os professores não são capazes de almejar tamanha sabedoria e por isso também se justifica o amarrotar da democracia.

A seráfica Marilú, qual virgem no altar, presta-se mais uma vez ao papel de mártir e assume, em conjunto com o seu santo governo, todas as decisões que a imensa, ignorante e mal-agradecida turba docente não tem grandeza para assumir.

A divina ministra é tão generosa que até compreende a insatisfação dos professores e educadores. Estes, tão miseravelmente mundanos, agarram-se a pormenores como o aumento da carga horária, o desempenho de funções estranhas à sua profissão, o desenvolvimento crescente de tarefas burocráticas em detrimento das pedagógicas e a falta de condições físicas e materiais.

A voz mais grossa, e menos chorosa, do ministro Santos Silva revela, por seu turno, o cavaleiro da democracia. Esclarece que nada se deve a Álvaro Cunhal ou a Mário Nogueira, e, por arrasto, ao partido em que um militou toda a vida e em que outro milita, alerta-nos para o perigo da “ditadura vermelha”, essa que os bravos socialistas impediram de ser instaurada. Santos Silva não necessita provar o que diz e só mentes muito pequenas e mesquinhas podem levantar questões como: a inexistência ministros com pasta comunistas nos sucessivos governos provisórios que se seguiram ao 25 de Abril; a forma como o PS mudou radicalmente de discurso entre Março e Maio de 1975 – da defesa de uma aliança de esquerda à defesa de uma “esquerda democrática”, a associação desta mudança e discurso às relações que se estabeleceram entre Carlucci e Mário Soares; a defesa que o PS (e o MES onde então militava Santos Silva) fazia, na altura, de muitos dos princípios e medidas que hoje associa à “ditadura comunista”; a confrontação com provas de que o 25 de Novembro de 1975 não foi um bem sucedido golpe de direita mas uma tentativa falhada de um golpe comunista.

Santos Silva, o anjo Gabriel da democracia, previne-nos contra o perigo que é o exercício da pressão popular sobre um ministro. Não adianta nada sobre a pressão dos grandes capitalistas sobre o governo. Essa não é perigosa, enquadra-se no âmbito da “democracia” que defende. Regista que é antidemocrático haver manifestações contra si enquanto ministro quando vai a uma reunião do PS mas quanto à obrigatoriedade de entrega dos ficheiros partidários no Tribunal Constitucional não manifesta a mesma opinião.

Também Emídio Rangel, menos compreensivo de Maria de Lurdes Rodrigues, esclarece que estes professores “transformaram-se em soldados do Partido Comunista, para todo o serviço”, um perigo, já se vê. E acrescenta sem papas na língua, revelando um “profundíssimo” conhecimento sobre a realidade da Educação em Portugal: “– Portugal não pode continuar a pôr cá fora jovens analfabetos, incultos e impreparados, como acontecia até aqui.
– Os professores colaboraram com um sistema iníquo que permitia faltas sem limites, baixas prolongadas sem justificação e incumprimento dos programas escolares.
– Os professores não são todos iguais. Quero referir-me àqueles que sem nenhuma vocação (com ou sem curso Superior) instalaram um culto madraceirão que ninguém punha em causa nem responsabilizava, mas que estava a matar o ensino.”

Rangel é o paradigma da verdade quando refere “estes pseudoprofessores que trabalham pouco, ensinam menos, não aceitam avaliações” e um fiel escudeiro que enaltece a sua dama: “Maria de Lurdes Rodrigues é uma ministra determinada. Bem haja pela sua coragem. Por ter introduzido um sistema de avaliação dos professores, por ter chamado os pais a intervir, por ter fechado escolas sem alunos, por ter prolongado os horários e criado as aulas de substituição, por ter resolvido o problema da colocação dos professores, por ter introduzido o Inglês, por levar a informática aos lugares mais recônditos do País. Estas entre outras medidas já deram frutos. Diminuiu o abandono escolar, os métodos escolares estão a criar alunos mais preparados, os graus de exigência aumentaram.”

Rangel só não explica que já existia um sistema de avaliação, que os pais cada vez menos participam nas actividades escolares dos filhos, que já foram encerradas escolas com 20 ou mais alunos e que a desertificação do interior do país se acentuou com estes encerramentos, que o prolongamento dos horários está a ser feito de forma anti-pedagógica, que as aulas de substituição não resolveram absolutamente nada, que há cada vez mais desemprego docente e é crescente o número de denúncias sobre irregularidades nas colocações, que as necessidades de ensino de Português estão a ser preteridas, assim como o Inglês nos 2º e 3º ciclos do Ensino Básico, e que no 1º ciclo só estão a servir para encher os bolsos de alguns amigos de autarcas. Tudo questões menores.

E viva a democracia.



1 comentário:

Dalaiama disse...

Continuas a escrever muitíssimo bem! Com a exactidão do coração e da razão!