Foi um daqueles dias em que todas as emoções nos invadem. Maioritariamente as piores. Um dia como os do velho dito: “há dias de manhã em que um tipo à tarde não devia sair à noite”.
Comecei o dia cheia de expectativas – desde que cheguei a Barcelona que quero aprender catalão. Mas as magras economias não me dão para pagar um curso. Vi no site da UAB (Universidade Autónoma de Barcelona) que há cursos gratuitos para os alunos. A minha escola, Eina, apesar de privada, está vinculada à UAB. Tudo e todos indicavam que como aluna teria os mesmos direitos que os restantes alunos da universidade. Lá fui eu, toda lampeira, até à dita cuja universidade.
Bem, não tão lampeira quanto isso… que não paguei o bilhete do comboio e ia borradinha de medo.
Chego à universidade e procuro o acolhimento a estudantes estrangeiros. Sou depois encaminhada ao serviço de línguas. Dizem-me que tenho de passar duas faculdades e tal e coisa. Lá me vi eu a andar num lamaçal e a fazer gincanas. Chego ao sítio e subo as escadas. Dão-me a notícia: “Eina no es UAB. Tines que pagar 527 euros. Los cursos gratuitos son para los estudiantes de la UAB”. “Hijos de puta!” e o resto saiu-me para dentro e em português: “vão mas é roubar p’á estrada!”. Ainda consegui perguntar: “Entonces… que es la vinculación de Eina a UAB?”, “Los estudiantes de Eina no tenien los mismos derechos?”. “Pues, no lo sé. Esto es lo que me han dicho, lo siento”. “Lo siento?…, lo siento?…, e se fosses mas é p’ó c...!”
A raiva tomou conta de mim e em menos que nada instalou-se-me uma dor de cabeça.
Voltei frustrada e comprei a merda do bilhete (mas só comprei uma zona). Cheguei à Praça Catalunha (o centro do universo) e almocei mesmo ali na estação. Saquei do farnel e com pena de mim própria engoli umas sandochas.
A coisa melhorou quando cheguei à escola. Lá me inteirei do funcionamento da sala dos computadores e da biblioteca. Ah! A biblioteca! Lembra-me um livrinho do Umberto Eco, chamado precisamente A Biblioteca. Uma torre de estantes e escadas laterais que nos levam a pequenos passadiços. Que nos permitem ver os livros à medida que subimos a torre. Numa das faces há pequenas janelas em cada “piso”. No último, quase inalcançável, onde estão os livros sobre ilustração e onde quase ninguém vai, sinto-me uma Rapunzel com vista para Barcelona.
Perco a hora e chego uns minutinhos atrasados à aula de escrita criativa. O professor pede que se descreva, primeiro o percurso até chegar ali. O ponto de partido fica ao critério de cada um. Eu começo com o dia a começar. Depois pede-nos que escrevamos o mesmo percurso mas só relatando as emoções. Diz-nos para escolher a emoção mais significativa e que a descrevamos na primeira pessoa. Escolhi obviamente a raiva.
E saiu-me este texto:
Sou vermelha e chego de repente.
Incendeio as pessoas por dentro e debaixo para cima. Reteso-lhes a garganta e faço-as ter consciência dos dentes. Obrigo-as a cerrá-los num desejo de morder até rasgar, até esmagar. Inflamo os olhos e transformo as mãos mais delicadas em garras poderosas.
Alojo-me na cabeça e transformo-me num vazio de fogo.
Aqueles que tomo, faço-os desligarem de si mesmos. Afasto-os da razão ou faço-os tomar consciência de que são impotentes, ou convenço-os que no imediato são impotentes.
O que é curioso, acho eu, é que a sensação negativa que a universidade me provocou serviu depois para fazer um trabalho para ela.
Biblioteca da Eina