ARTE DE TRANSFORMAR XXI - Ainda a república
Iconografia da república ou as mamas de Mariana
Sobre o barrete frígio pouco há a dizer; ele é o mais frequente ícone da república, é um símbolo que teve origem na antiga Roma, identificando os escravos libertos por aforria. Costumava aparecer nas representações da liberdade. Teria surgido originalmente numa moeda cunhada em Roma, com o dístico Republica Liberata e foi depois amplamente difundido com a Revolução Francesa.
Do mesmo modo também os seios se tornaram atributos da república, embora com origem mais recente. João Medina refere que em 1830, depois de uma primeira representação mais idealizada (por alturas da revolução) e de uma segunda mais varonil (do tempo da I República francesa) seguiu-se uma terceira, nascida nas barricadas, e celebrizada por Delacroix no famoso quadro “Liberdade guiando o povo” (acima), que
“passou a ser, de modo inequívoco e acentuado uma mulher com seios: seios planturosos, vigorosos, seios ostensivos geralmente nus ou amplamente decotados de maneira a serem generosamente oferecidos aos olhos e à libido dos seus sequazes-admiradores-fanáticos(...)
Uma vez triunfante com a III República, Mariana sobe aos altares das «mairies» e das perfeituras, é cultuada nos nichos dos templos burocráticos, preside a tribunais e repartições públicas, reina sobre o seu povo: mas é sempre a Mulher dos Seios nus ou, pelo menos opulentos, prometidos, entremostrados ou calmamente derramados do decote onde a feminilidade e as glândulas mamárias se escondem ou recatam. Os seios funcionam doravante como o barrete frígio, definem-na essencialmente: ela é a Mulher com Seios, isto é, a Amante ou a Mãe que se oferece à fome dos seus, a protectora dos esfomeados, a ama dos deserdados, a Virgem-Mãe que, de certo modo, substitui a Virgem Maria nos altares populares. (...) os seios que a República oferece ao povo republicano são, multiplicados por dois, aquele seio maternal que, nos altares a Virgem Mãe dá ao Menino Jesus, ele mesmo símbolo da Humanidade carente, frágil, e necessitada” . Roque Gameiro estaria bem ciente desta representação da república, tanto que mais tarde seria o autor de uma litografia (de 1909 ou 10) [ver imagem do post sobre o 31 de Janeiro de 1891 – Vermelhices VII] em que “o lado «mamalhudo» da república nunca foi escamoteado, antes pelo contrário, exagerou-se o volume mamário a ponto de provocar alguma chacota, a começar pela expressão patriotismo como sinónimo popular de ostentação de seios planturosos” .
João Medina apresenta ainda de um modo esclarecedor, a visão burguesa que Gameiro teria da república:
“na sua configuração seria possível detectar uma certa dualidade da imagem que entre nós representou -, na prática, foi – a revolução portuguesa. A litografia de Roque Gameiro mostra-nos, sobre um horizonte imenso de centena e meia de reconhecíveis figuras cimeiras do Partido Republicano Português – em vésperas do 5 de Outubro, julgamo-lo -, pairando, sobre esta prole imensa de homens (...), a República Mãe, de opulentos seios: é o Povo republicano reunido, unânime e compacto em torno, e à sombra tutelar, da República portuguesa, da Mulher-Liberdade, cujo advento se espera com fervoroso messianismo, de cunho provavelmente mariânico (...) esta mulher, posta ao centro e acima do seu povo, tem a compostura e o classicismo da primitiva imagem da República de inspiração romana: é a deusa tutelar casta e forte, sem dúvida de peito descoberto, mas de túnica intacta, serena na atitude, duma grande gravidade na verticalidade como que imóvel do seu corpo. Corpo de Mulher-Deusa e não de revoltosa em cima de barricadas. Até a espada que segura e levanta com a mão direita tem um aspecto sereno. (...) não há aqui barricadas nem homens em fúria. Estas 161 figuras que Roque Gameiro, com imensa paciência, desenhou em torno da Mulher-Liberdade são burgueses bem vestidos ou fardados, gente séria, um tanto grave com ar de quem espera que o triunfo da sua causa venha por vias pacíficas e não pela força das armas. (...) nada deve à mulher do povo que Delacroix pôs em cima das barricadas, no meio de homens que combatem e gritam, morrem ou jazem feridos, no meio de destroços e isto apesar de sabermos que o 5 de Outubro triunfou após combates cruentos numa cidade riscada pela fuzilaria das armas, abalada pelo estampido dos canhões dos barcos revoltosos surtos no Tejo e do explodir dos petardos da «artilharia civil» (...). E não obstante ter vencido no meio do fogo, do sofrimento, da incerteza, da angústia e do sangue, esta revolução era precedida duma lenda de pacifismo e legalismo que sabemos inteiramente falsa, à luz do que se passou no congresso do partido reunido em Setúbal em Abril de 1909, e donde saiu um directório encarregado «por a Revolução na rua», custasse o que custasse ou seja, com evidente consciência de que a realeza só havia de baquear pela força das armas” .
Em algumas representações da república portuguesa também se encontram ramos de oliveira, que, embora não façam parte da normal da sua iconografia, a ela estão associados, representam a paz (em que cujas figuras femininas alegóricas aparecem sempre cingindo as têmporas. O ramo de oliveira associado à pomba branca – Espírito Santo – é também um antigo símbolo cristão evocativo da paz, retomado no século XX por Picasso que o difundiu, sendo depois adoptado por organizações progressistas).
A estrela de cinco pontas aparece isolada, sobre o barrete frígio ou sobre a testa da figura. É o ícone com maior número de significações simbólicas. Muitas delas são marciais. Também surge como símbolo do internacionalismo proletário (cada uma das pontas representará um dos continentes). Mas as representações das estrelas de cinco pontas sobre a testa, e mais frequentemente a de seis pontas, ou hexalfa, aludem a cultos do sol, e, estranhamente, em grande medida o culto do sol lembra o absolutismo e a monarquia. Nas representações portuguesas ela aparece invertida: os símbolos invertidos têm conotações vulgares com o mal. No caso da estrela pentagonal passa-se o mesmo, mas nessa situação costuma ser representada com os vértices unidos e inscrita num pentágono, formando o pentagrama Não é o caso. E também não me parece que de algum modo possa aludir ao mal. Mas também se sabe que a carbonária utilizava um triângulo idêntico ao da maçonaria mas invertido, e que tinha por símbolo uma estrela de cinco pontas. É pois plausível considerar que a maçonaria fizesse o mesmo, isto é, que invertesse o símbolo carbonário e se apropriasse dele.
O feixe de lictores é, do mesmo modo, um dos símbolos da república. São molhos de varas de trigo e eram usados na antiga Roma como símbolos de poder. O imperador, por exemplo, correspondia a 24 feixes, o cônsul a 12, o pretor a 6, o edil a 2. O Fascismo italiano adopta esse símbolo (donde, aliás, deriva o seu nome), no entanto para o republicanismo ele deve andar sempre associado ao barrete frígio significando a tomada de poder (lictores) pelos escravos (barretes). E apesar do uso fascista dos lictores ter gerado o abandono da sua representação por parte de muitas instituições republicanas, ela continua pontualmente a ser usada (por exemplo, no selo da República de Cuba).
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