Será que alguém tem paciência para a minha verborreia intelectual?
O que são homenagens?
A condição humana é, entre outros aspectos, a do dilema ou contradição, da consciência de uma vivência limitada a uma singularidade, isolamento e efemeridade e a ambição à omnisciência e à omnipresença. A nossa racionalidade permite-nos estabelecer laços de comunicação inteligíveis, que alargam o nosso campo de acção, e logo geram a ambição e contribuem para a sua satisfação, mas paradoxalmente é a nossa liberdade individual que nos limita, pois a sua vastidão funciona como engodo ou tentação. A liberdade em si não concede sentido à nossa existência, i.e., não transforma a nossa vida fugaz numa realização plena. São as escolhas que fazemos no uso dessa liberdade que nos asseguram um entendimento lógico do mundo. Deste modo a nossa consciência de ser passa, não pelo nosso “conteúdo” enquanto indivíduos mas, pela noção que temos da nossa própria envolvência, ou seja; do mundo. A gestão da liberdade torna-se assim um exercício de opções. Sabendo que não podemos isoladamente superar a precariedade e a fragilidade da nossa vida, optamos inconscientemente por atribuir à nossa mundivivência os motivos que nos estimulam a razão. Negamos assim, inconscientemente, a nossa existência para nos concebermos, a nós próprios, também inconscientemente, como missionários da nossa ambição.
Ainda que não esteja esclarecido se as restantes espécies animais colocam ou não a sobrevivência da espécie sobre a vida de cada indivíduo, o que parece ser verdade é que os seres humanos no geral, pelo menos na nossa civilização industrial e ocidental, dão bastante mais importância à construção de uma personalidade individual e original do que à identidade colectiva. É contudo impossível sobrevivermos à angústia da consciência do isolamento sem exercermos a nossa liberdade com sentido colectivo, ou seja; só nos superamos a nós próprios colectivamente (o que pode ser entendido como uma forma muito particular de sobrevivência da nossa espécie).
Assim, a nossa identidade individual forma-se por meio de referências. Este processo é, obviamente, cultural. E dentro do cultural ele é, essencialmente, ideológico. Quer isto dizer que estas referências são representações determinadas em função das experiências e das próprias condições de existência, por um lado. E porque essas experiências e condições são comuns a vários indivíduos, e porque temos a absoluta necessidade de nos superarmos colectivamente, as nossas identidades individuais são sempre, por outro lado e em grande medida, expressões de uma identidade colectiva. Símbolos, emblemas e mitos identitários são então referências culturais e ideológicas criadas, fomentadas, adaptadas, por indivíduos que partilham as mesmas vivências.
As homenagens são manifestações de fidelidade identitária, i.e., são provas de admiração ou veneração a que nos obrigamos a cumprir, são cultos ou reverências que ajudam a criar e alimentam estes símbolos, emblemas e mitos. Por definição a homenagem era “promessa de fidelidade que prestava ao suserano o vassalo que recebia o feudo”[1]e também “o lugar assinalado a um detido para poder andar em liberdade”[2], esta palavra evoluiu depois para menagem, que mais facilmente ligamos ao regime feudal. Por associação, somos vassalos culturais e as nossas referências os suseranos. O nosso espaço de liberdade é o nosso âmbito de criação cultural, previamente definido pelas nossas condições particulares de existência. Somos, enfim, leais, constantes, francos, sinceros e dedicados porque somos orientados a sê-lo. Ao contrário das promessas que fazemos por opção e que nem sempre cumprimos, nesta relação “feudal” estamos obrigados ao preito, ao pagamento de um tributo, ao qual nem sequer podemos querer fugir. E só traímos as nossas referências culturais quando “senhores” mais fortes vencem os nossos suseranos, quando uma “nova ordem” se impõe, aí aculturamo-nos.
As homenagens são ainda relações de dependência que dispensam vínculos legais ou barreiras temporais. Como todas as relações privilegiadas do antigo regime, baseiam-se na palavra e são seculares, legitimam-se pela honra e pelo tempo. Deste modo a nossa promessa de lealdade subsiste para além da nossa existência, dando então sentido à nossa vida: o cumprimento de um imperativo ontológico. Assim herdamos e transmitimos por herança a vassalagem cultural. Colectivamente somos um todo cultural de fronteiras móveis, tão móveis quanto são os seus elementos constitutivos.
Herdamos os homenageados dos nossos homenageados. Ou seja: as referências daqueles a quem prestamos homenagens tornam-se também nossos homenageados, i.e. nossas referências. Em suma, quando hoje fazemos uma homenagem estamos a dar corpo visível à nossa orientação cultural e ideológica, estamo-nos a afirmar e ao nosso património cultural, pois o objecto da nossa homenagem não se define a si próprio, é também fruto do seu contexto. Deste modo as nossas homenagens são manifestações de sedimentação cultural.
Ao venerarmos um símbolo prestamos reverência às suas origens, ao elegermos um herói o nosso tributo é para os seus feitos, ao criarmos um mito cultivamos aquilo que o explica, ao mostrarmos a nossa estima pela vida e a obra de um artista revelamos também fidelidade para com as suas fontes de inspiração e influências.
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