segunda-feira, janeiro 31, 2005

*Vermelhices (Comentários Políticos) VII*


Posted by Hello

O 31 de Janeiro de 1891

Muitos historiadores consideram que o republicanismo em Portugal morreu com o 5 de Outubro de 1910. O Partido Republicano vinha reunindo desde 1905 todo o tipo de opositores à ditadura de João Franco; republicanos liberais, republicanos socialistas, monárquicos liberais regeneradores e conservadores, entre outros. O partido descaracterizou-se e em 1911 até mudou de nome (de Partido Republicano Português para Partido Republicano) tornando-se um verdadeiro saco de gatos e plataforma para todo o tipo de oportunistas que visavam o poder. A primeira república foi uma verdadeira frustração para todos os que acreditavam na mudança. A título de exemplo refira-se que a constituição de 1911 não adianta uma linha sobre a estrutura económica do país. Assim, Portugal manteve-se um país dependente com uma economia agrícola (ainda com muitos traços feudais) e uma tímida indústria. O desenvolvimento capitalista não se deu e os maiores progressos registados foram na educação e na laicização do Estado (com a importante passagem das competências de registo e recenseamento da igreja para o estado). Esta laicização foi de tal forma abrupta (tendo em conta que Portugal tinha sido um país rigidamente católico, com uma população analfabeta que nunca tinha assimilado sequer os ideais do iluminismo), a partir de 1914, o clericalismo, vitimando-se e aproveitando a situação de crise e do pavor da guerra (os soldados começaram a exigir padres nas frentes) ganha terreno. Criam-se assim as condições para o conservadorismo e o fanatismo religioso (cuja principal manifestação é a ilusão colectiva de Fátima). E cresce então o integralismo lusitano de Sidónio Pais (ideologia de extrema-direita) que inspirará o Estado Novo.

Mas antes, muito antes, o republicanismo era a ideologia que inspirava os filhos das revoluções e revoltas como as do setembrismo, da Maria da Fonte e da patuleia, daqueles que acompanharam os acontecimentos de 1848 e 1871 em França; a chamada geração de setenta, que incluía o precursor do socialismo em Portugal (Antero de Quental). E essa geração andava aliada com os primeiros movimentos de assalariados agrícolas e operários industriais (também eles criadas à imagem das antigas trade unions). Um movimento pouco consolidado, como diria, mais tarde, Bento Gonçalves, mas, ainda assim, existente. Um movimento que na consequência de uma grave crise social, económica e política e com a “gota de água” do ultimatum inglês provoca, na cidade do Porto, uma primeira tentativa de implantação da república – essa sim faria juz ao barrete frígio, ao feixe de lictores e à Marianne de peito desnudado. No entanto, como disse Lenine, Portugal é o país das revoluções inacabadas.
Mas se a revolução liberal trouxe a monarquia constitucional, o 5 de Outubro o liberalismo, o 25 de Abril o capitalismo, da próxima vez chegaremos ao socialismo.
A história demonstra que os movimentos de libertação têm avanços e recuos, e para desmontar a teoria dos profetas do fim da história há que contá-la!

A Portugueza, hoje hino nacional, era uma das canções dos revolucionários do 31 de Janeiro e inclui um conjunto de estrofes que hoje não se cantam, mas que são, em minha opinião, as mais bonitas (e reparem na actualidade):

Saudai o Sol que desponta
Sobre um ridente porvir;
Seja o eco de uma afronta
O sinal de ressurgir.

Raios dessa aurora forte
São como beijos de mãe,
Que nos guardam, nos sustêm,
Contra as injúrias da sorte.
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!

Antero de Quental suicidou-se a 11 de Setembro desse mesmo ano de 1891. Certamente porque, entre outras razões, a revolução fracassara.

A um poeta

Tu, que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, fazei espada de combate!

Antero de Quental

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Lista de preferências sem hierarquias

- a paz
- as cerejas
- camas grandes e baixinhas
- livros de contos
- todas as cores
- olhar para o fogo
- beijar apaixonadamente
- partilhar planos
- pintar
- observar pessoas
- jogar mankala no banho
- poder lutar
- música
- música
- música
- amigos sinceros
- maçarocas assadas
- a dignidade
- defeitos confessos
- o céu estrelado
- amores-perfeitos
- o cheiro da bela-luísa
- a fraternidade
- sorrisos
- missangas
- ver a cebola a alourar no azeite
- os incorruptíveis
- olhares cúmplices entre desconhecidos
- o cheiro das maçãs
- gatos
- que me contem histórias
- organizar as prateleiras, as pastas e os papéis
- amar ao acordar
- licor de amora
- biscoitos de Azeitão
- melancia
- a festa!
- os persistentes
- cadernos novos
- fotografias velhas
- conversar com as crianças – o poema pedagógico
- o cheiro da cera no chão das casas antigas
- o sentir do dever cumprido
- conversas aparentemente inúteis na escuridão
- acampar
- a verdade
- boiar no mar
- vinho carrascão
- o cheiro do café
- o algodão
- ver o mar
- o comunismo


quinta-feira, janeiro 20, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XX

Posted by Hello


STRANGE FRUIT

Seven trees
Bearin' strange fruit
Blood on the leaves
And blood at the roots
Black bodies Swinging in the southern breeze
Strange fruit hangin'
From the poplar trees
Pastoral scene
Of the gallant south

Them big bulging eyes
And the twisted mouth
Scent of magnolia
Clean and fresh
Then the sudden smell
Of burnin' flesh

Here is a fruit
For the crows to pluck
For the rain to gather
For the wind to suck
For the sun to rot
For the leaves to drop
Here is Strange and bitter crop

Lewis Allen, Sonny White. Intrepretada por Nina Simone

segunda-feira, janeiro 17, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XIX

(a recordar o Brotas)

LIBERTÉ

Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écute ton nom

Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom

Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne de rois
J'écris ton nom

Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom

Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc de journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom

Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom

Sur le champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom

Paul Eluard

domingo, janeiro 16, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XVIII

OBREROS MARITIMOS

En Valparaíso, los obreros del mar
Me invitaron: eran pequeños y duros
Y sus rostros quemados eran la geografia
Del Océano Pacífico: eran una corriente
Adentro de las inmensas aguas, una ola muscular,
Un ramo de alas marinas en la tormenta.
Era hermoso verlos como pequeños dioses pobres,
Semidesnudos, malnutridos, era hermoso
Verlos luchar y palpitar con otros hombres más allá del océano,
Con otros hombres de otros puertos miserables, y oirlos,
Era el mismo lenguaje de españoles y chinos,
El lenguaje de Baltimore y Kronstadt,
Y cuando cantaron “La Internacional” canté con ellos:
Me subia del corazón un himno, quise decirles:”Hermanos”,
Pero no tuve sino ternura que se me hacía canto
Y que iba con su canto desde mi boca hasta el mar.
Ellos me reconocían, me abrazaban con sus poderosas miradas
Sin decirme nada, mirándome y cantando.

Pablo Neruda


AZULICES (Curiosidades açoreanas) IX - Pico (todos os dias)

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Neve no Pico dos 1300 aos 2351m.
Há qualquer coisa nesta paisagem que não consigo expressar. É como explicar as cores a um cego. Reconhecer tão bem um sentimento e não conseguir traduzir por palavras provoca em mim a tomada de consciência de que o verbo jamais suplantará a sensibilidade. E ainda bem que assim é. Significa que em todos nós existe a rebeldia do pensamento.
Schiller tinha alguma razão quando falava na educação estética da humanidade: apurar o conhecimento sensível é educar para a crítica. Não admira que a formação artística esteja cada vez mais descurada.
Estupidamente, a única coisa que consigo dizer sobre esta imagem, e a vida que decorre tendo-a como pano de fundo, é que me lembra uma mistura entre a série Verão Azul (lembram-se? - non nos moveran!) e o Bell e Sebastião.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

»»»Komunas Flamejantes II«««

Posted by Hello


As Komunas Flamejantes actuaram, no passado dia 31 de Dezembro, no magnífico cenário do Cromeleque dos Almendres nos arredores de Évora. Entre o público deslumbrado ouviram-se exclamações e interrogações como estas: "chiça! até os menires, aqui plantados há milhares de anos, dançam!" ou "não é melhor desligar os faróis do carro antes que a bateria se lixe?", ou ainda "ó Irene, tens a certeza que estas pedras estão gravadas?".
Foi a primeira vez que este enigmático sítio serviu de palco para um concerto musical desta envergadura. Antes, apenas a Irmandade dos Maluquinhos dos Solestícios, Os Merlins do Alentejo e o Grupo-que-jura-que-se-os-extra-terrestres-nos-visitarem-hão-de-pousar-no-cromeleque entoaram cânticos, respectivamente, à Deusa Mãe, aos antepassados selvagens e aos seres-verdes-que-nos-iluminarão, naquele recinto (também não podemos garantir se os paleolíticos e os neolíticos realizaram ou não, por ali, mega-concertos de bandas que talvez se chamassem Romanos Mortos ou Veados Cantantes). Na fotografia o dueto maravilha interpreta o êxito Grândola Brunette Village.
Eis a sapiência do Engenheiro Lopes:

As Komunas Flamejantes acrescentaram mais um factor de distinção no universo da música portuguesa e na música de intervenção mundial:

Ao actuarem entre os cromeleques de Évora, as Komunas Flamejantes aliaram a arte-música à arte-monumento, e aliaram também a música à história e ao património.

As komunas flamejantes, para além do seu percuso musical feito à custa do derrube de preconceitos pseudo-intelectuais, afirmam-se como guardiãs da arte e do património português.

Tal preocupação, dedicação, e sensibilidade estética colocam-nas a um nível onde poucos chegaram.

Poucos como Giacommeti ou Fernando Lopes-Graça.

João L - Manager

quarta-feira, janeiro 12, 2005

projecto de mural par a a Festa do Avante! 2004 Posted by Hello


MUDAR DE DISCURSO

Uma prosa em verso
(dedicada à Maria do Céu e à Ana Lourido)

I
Dizem-me muitas vezes
Com preocupação
E até simpatia,
Ou com desprezo
E rancor,
Que o meu partido
Deve mudar de discurso
Sob o risco de entropia
E desaparecimento.

Dizerem-me isso
É como dizerem:
Muda o teu discurso.
O que é o mesmo
Que dizerem:
Muda o teu pensamento.

Não, não, nada disso,
Respondem,
As tuas ideias
São justíssimas,
Os teus objectivos
Generosos,
Tens é de mudar a forma,
O conteúdo é perfeito!

Alguns acrescentam:
Embora utópico,
Irrealizável.

Faço aqui um aparte:
Terão dito
Algo do género
A Jesus Cristo?
E os milhões
Que lhe prestam culto
Não acreditam
No seu apelo de mudança?

Acontece porém
Que as minhas ideias
Não são
líquido moldável
à forma de um recipiente.
São antes
Um cristal
De forma estruturada
E precisa
Em constante desenvolvimento
E segundo
Uma mesma matriz.
Não se pode moldar
Sem quebrar.

II
A forma do meu pensamento
Deve-se
Ao seu conteúdo.

O meu discurso
São as minhas ideias
E não se resume
A um enunciado simples:
Tenho uma razão de vida
Uma ideologia,
Um guia para a acção,
Como aliás,
Tem toda a gente.

Tenho-a,
De forma consciente.
E a consciência
Faz parte dela.
Cresci
No meio da maioria,
Entre aqueles
Que só têm
A sua força de trabalho
Como garantia de sustento.

Mas,
Cresci também
Perto de gente
Que me ensinou
A questionar tudo,
Tudo.
Principalmente
A apregoada imutabilidade
Da organização social,
A repetida natureza egoísta
Do ser humano,
Em suma;
O sedimentado estado
Em que uns,
Proprietários
Dos meios de produção,
Exploram os outros,
Que apenas possuem
Braços e cabeça
Para trabalhar

III
Formei-me como ser humano
Com esta massa
De experiências e ideias
Eu sou isto.

Outros crescem
Assimilando a cultura
Do individualismo
E do sucesso.

Outros crescem
Achando que um dia
A divina providência
Resolverá
Os problemas da humanidade.

Outros crescem
Convencendo-se
Que as coisas mudam
Por adaptação.

Outros crescem
Pensando que
O mundo muda
Apenas com tolerância
E boa disposição

Outros crescem
Julgando
Que tudo está bem
E que existem uns
Rancorosos,
Invejosos,
Preguiçosos,
Que exageram
O que está mal

Outros,
Muitos,
Muitos,
Talvez a maior parte,
Nem cresce,
Nem pensa:
Subsiste

IV
Eu formei-me
Como ser humano
Tomando consciência
Que não existe
Uma ordem natural
Da sociedade.

Nada é natural
Na sociedade.
Tudo é construído.
E se tudo é construído
Tudo pode ser
Reconstruído.

Como seres humanos
Ganharíamos
Muito mais,
Colectiva
E individualmente,
Com o equilíbrio das relações.

O poder de uns
Sobre outros
Sustentado na força
Ou na propriedade,
Na manipulação
E na humilhação,
Não beneficia ninguém,
Não confere sentido
À vida de ninguém,
Não torna ninguém
Mais feliz.

IV
E assim sendo,
Eu, e todos
Os que partilham
destas ideias,
Agimos
Na convicção
De que as coisas
Podem e devem mudar.

Eu,
E os que partilhamos
Estas ideias e objectivos,
Todos os dias
Pensamos
e repensamos
O caminho
Que devemos trilhar.

E todos os dias
Avaliamos
a nossa força
e os meios que temos
para romper
com o estado das coisas.

Invariavelmente concluímos
Que há que convencer
Mais e mais pessoas
Para a necessidade de mudar.
Concluímos
Que é fundamental
Engrossar fileiras.

V
Mas não é fácil,
Não é nada fácil.
A humanidade
Ainda não amadureceu.

Muitos ofuscam-se
Com o brilho de holofotes
Sobre sorridentes heróis de plástico.

Outros
Ficam embalados
Com frases e ideias
Repetidas incontáveis vezes,
Lamentando com doces vozes
A pobreza e a miséria
Enquanto outras informam,
Com disfarçado cinismo,
Que não há nada a fazer;
É o preço a pagar.
Tudo o que se podia fazer
Foi feito.

A maioria
Impressiona-se
Com os apelos
À calma e à contenção
Que marionetas,
Em fatinhos
E poses de estado,
Vão produzindo

Os seres humanos
Ainda estão imberbes,
Ainda não levantaram os olhos
Para ver os outros.
A solidariedade e o altruísmo
São valores
Que para muitos
Ainda estão desligados
Do sentido crítico
E da vigilância.
Ou seja;
Só se lembram deles
Se a caixinha de imagens
Assim o disser.

A manipulação
É imensa,
Brutal,
Tão gigantesca
Que não existe
Campo de visão
Para a alcançar
Num olhar.

Os seres humanos
Obedecem
De tal forma
À voz do dono
Que nem se dão conta
Que pisam o companheiro.

VI
E há quem nos diga:
O vosso discurso
Tem de ser atractivo,
Não podem
Usar velhas fórmulas,
Velhas propostas,
Velhas palavras.

Ah! Não!
Não podemos
Submeter a estratégia
À táctica.

Vivemos
A velha exploração,
A velha mentira,
O velho medo.
E as velhas palavras,
As velhas propostas,
As velhas fórmulas,
Continuam válidas

É certo
que a ofensiva
foi apurada.
Mas também
A nossa análise
Foi refinada.

E havendo
Outros métodos,
Outras estratégias,
Outros modos eficazes,
Sem concessões
Ao sistema da exploração,
Da vilania,
Do individualismo,
Do terror,
Da mentira,
De melhorar,
De libertar a humanidade,
Eles que se apresentem,
Que se discutam
Que se expliquem,
Que vinguem.

VII
Todos os dias
Pensamos
e repensamos
O caminho
Que devemos trilhar.

A humanidade é muito imatura
E corre o risco
De se tornar velha
Sem ter sido jovem.

É preciso
E é possível mudar.

Mais
Do que uma mudança
De discurso
O que o mundo precisa
É de muitos e bons
Amplificadores
Da nossa voz,
Gente descomprometida,
Que compreenda
Que é preciso apontar,
Denunciar,
Chamar
Os bois pelos nomes,
Apelar
E despertar as mentes,
Sem medo do pensamento dissonante,
Sem receio da discussão,
Com capacidade de afirmação
E de conquista
De mais e mais seres humanos
Dispostos a integrarem
Uma torrente de água fresca
Nesta terra seca
Em que o mundo se está a tornar.

terça-feira, janeiro 11, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XVII - Rodin III


A Bela Heulimiere Posted by Hello

A beleza para além do ideal a que me referia no texto anterior está descrita na citação que se segue. Foi extraída de um livro, “Um Estranho numa Terra Estranha”, de Robert Heinlein, que na década de sessenta obteve bastante sucesso e foi um símbolo de geração. Na história existe uma personagem, Jubal, que colecciona originais e réplicas das obras de Rodin. No trecho Jubal descreve a Ben a Bela Heulimiére:

“ (…)
- Mais uma opinião. Que é que pensas deste bronze?
Anne olhou para obra-prima de Rodin e disse lentamente:
- Quando a vi pela primeira vez, pensei que era horrível. Mas cheguei à conclusão de que ela pode ser a coisa mais bela que vi em toda a minha vida.
(…)
- Escuta-me, Ben. Qualquer pessoa pode ver uma rapariga bonita. Um artista pode olhar para uma rapariga bonita e ver a mulher em que ela se transformará. Um artista melhor pode olhar para uma mulher velha e ver a bonita rapariga que ela era. Um grande artista pode olhar para uma mulher velha, retratá-la exactamente como ela é… e forçar o espectador a ver a bonita rapariga que ela era… Mais do que isso, ele pode fazer com que qualquer pessoa com a sensibilidade de um armadilho veja que essa bela e jovem rapariga está ainda viva, prisioneira dentro do seu corpo arruinado. Pode fazer com que tu sintas a silenciosa e infinita tragédia de nunca ter existido uma rapariga que tivesse envelhecido para além dos seus dezoito anos… independentemente do que lhe fizeram as horas impiedosas. Olha para ela, Ben.”

Na antiga Grécia (período helenístico) construíam-se colunas com formas masculinas (atlantes) e femininas (cariátides). A partir do renascimento a construção deste tipo de colunas foi retomada. Rodin esculpiu uma Cariátide Caída Debaixo da Sua Pedra. No referido livro encontramos esta explicação de Jubal:

“ (…)
- E esta? Vejo que é uma rapariga. Mas porquê esborrachá-la para que ela se pareça um pretzel?
Jubal olhou para a réplica da Cariátide Caída Debaixo da Sua Pedra.
- Não espero que aprecies a quantidade de coisas que fazem desta figura muito mais que um pretzel; mas podes apreciar o que Rodin queria dizer com ela. Que é que as pessoas sentem quando olham para um crucifixo?
- Sabes que eu não vou à igreja.
- Apesar disso, deves saber que as representações da Crucificação são geralmente horríveis… e as que estão nas igrejas são as piores… sangue que parece ketchup e aquele ex-carpinteiro retratado como se fosse um homossexual… o que ele certamente não era. Era um homem robusto, saudável e musculoso. Mas uma retratação pobre é tão eficaz para a maior parte das pessoas como uma boa. Eles não vêem defeitos; vêem um símbolo que inspira as suas mais profundas emoções; recorda-lhes a Agonia e o Sacrifício de Deus.
- Jubal, pensava que não eras cristão.
- Isso faz com que eu seja cego às emoções? (…) A arte comque tal símbolo é feito é irrelevante. Aqui temos outro símbolo emocional, mas feito com arte exímia. Bem, durante três milhares de anos, os arquitectos desenharam edifícios com colunas com forma de mulher. Finalmente, Rodin chamou a atenção para o facto de isso ser um trabalho demasiado pesado para uma rapariga. Ele não disse: “Olhem, seus brutamontes, se têm de fazer isto, façam-no com uma forte figura de macho.” Não, ele mostrou-o. Esta pobre cariátide caiu sob a sua carga. Ela é uma boa rapariga: olhou para o seu rosto. Sério, infeliz pelo seu falhanço, não censurando ninguém, nem sequer os deuses… continuando a tentar erguer a sua carga, depois de ter sido esmagado por ela.
Mas ela é mais do que boa arte denunciando má arte; ela é um símbolo para todas as mulheres que alguma vez suportaram uma carga demasiado pesada. Mas não só mulheres: este símbolo significa todo o homem e toda a mulher que suaram a vida inteira com uma fortaleza de espírito resignada, até caírem debaixo dos seus fardos. Ela é coragem, Bem, e vitória.
- Vitória?
- Vitória na derrota, não há outra maior. Ela não desistiu, Ben; continua a tentar levantar a sua pedra depois de essa mesma pedra a ter esmagado. Ela é um pai que trabalha para trazer para casa mais um salário enquanto o cancro lhe consome as entranhas. Ela é uma menina de doze anos tentando ser mãe dos seus irmãos porque a mamã foi para o céu. Ela é uma operadora de um quadro de distribuição agarrada ao seu posto enquanto o fumo a sufoca e o fogo lhe corta a saída. Ela é todos os heróis não cantados que não conseguiram os seus feitos, mas que nunca desistem.”


sábado, janeiro 08, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XVI - Rodin II


O Beijo Posted by Hello

O Beijo é muito provavelmente a obra de arte que mais alude à sensualidade. O trabalho de Rodin transpira amor carnal e uma beleza física que transcende o ideal. Por reconhecer esta sensibilidade única, Isadora Duncan dançou nua para ele nos bosques de Vélizy.

No Museu do Chiado estão alguns dos seus desenhos.


ARTE DE TRANSFORMAR XV - Rodin I


O Pensador Posted by Hello

Uma das minhas ocupações mentais favoritas consiste em imaginar uma colecção de obras de arte. Uma colecção que disporia numa cidade imaginária: dentro de cafés, em escolas, em instituições públicas, teatros, cinemas, museus, estações de comboios, jardins e rotundas. O centro da cidade teria duas praças contíguas: o fórum político e administrativo e o centro lúdico e cultural. A pontuar as praças colocaria duas das melhores obras de escultura alguma vez feitas: O Pensador e O Beijo, ambas de Auguste Rodin - o escultor da alma, da razão e do amor.

Rodin alcançou grande notoriedade em vida. Lutou, como tantos outros artistas contra o preconceito, mas o seu génio vingou. Nos últimos anos da sua vida viveu cercado de caçadores de heranças. A cerca de um ano antes da sua morte decidiu doar toda a sua obra ao estado frânces. Foi abandonado. Morreu a 17 de Novembro de 1917 em Meudon, onde ainda hoje jaz sob a estátua de O Pensador.

O Caminho

Por mais que eu grite
a minha boca continua selada
Por mais que eu aponte
os meus dedos nada indicam
Por mais que eu chore
as lágrimas não vertem
Por mais que eu corra
o chão continua o mesmo

Eu que sempre fui um pássaro
hoje sinto-me uma rocha
Era ar
e desfiz-me em terra

Construí umas asas de cera
e voei na direcção do sol
despenhei-me no labirinto
e encontrei o minotauro.

Caí na minha própria armadilha
E ao invés do braço solidário
pediram-me desculpas
e ofereceram-me o chicote.

Mas não me chamo Ícaro
E não desisto:
plantarei árvores e flores pelo caminho
e assim reconhecerei os sítios por onde passar
Nada direi mas todos saberão o que quero dizer.

E encontrar-te-ei

quinta-feira, janeiro 06, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XIV - Sem Tréguas

“Os gapistas[1] nunca foram muitos: uns eram muito jovens, outros tinham atrás de si a experiência da guerra de Espanha e a severa disciplina da luta clandestina, do cárcere fascista, do desterro. Todos, no difícil momento da acção, nos dias dramáticos da acção mais violenta, quando a vida estava presa por um fio a uma denúncia, a uma rusga casual, todos, jovens e velhos, souberam encontrar força e consciência para não desistir, Antes de mais, os gapistas foram homens que amavam a vida, a justiça; acreditavam profundamente na liberdade, ansiavam por um futuro de paz, não actuavam por ambição pessoal, por oportunismo, por cálculos mesquinhos.Eram super-homens? Claro que não. Eram simplesmente homens, mas homens dominados pela vontade de não dar tréguas ao inimigo. O seu orgulho tinha raízes profundas: conscientes do sacrifício de todos os que corajosamente tinham sofrido a prisão, as perseguições, as torturas, guiavam-se pela sua grandeza e pelo seu exemplo. Sem a autoridade dos velhos militantes que tinham sofrido a prisão, o desterro e o exílio, não teria sido possível aos dirigentes exigirem dos gapistas, dos partigiani[2] a disciplina mais severa, que levava em muitos casos à morte mais trágica, nem os combatentes terem ânimo para a enfrentar. Era só orgulho e entusiasmo o espírito que deu alento aos gapistas? Era um laço de confiança mútua entre os velhos militantes e os jovens, entre os que tinham mostrado saber manter-se no rumo certo abrindo novas perspectivas e os que se inseriam numa luta que era a luta de sempre contra a prepotência, o privilégio, a escravidão. Não há dúvida que sem os antigos laços entre o presente sombrio e o passado glorioso, não teria havido guerra de libertação, não teria sido resgatada a vergonha do fascismo, «não teríamos conquistado o direito de ser um povo livre e independente».(…)
A pouco e pouco estes homens souberam juntar à sua volta outros combatentes que se lançaram com determinação no combate e lutaram com inteligência e coragem até à libertação.O relato das suas actuações não pretende ser só uma ampla citação, de episódios de guerra. Sem Tréguas contem uma lição muito profunda, tão válida hoje como ontem. É uma lição que os homens, os jovens que estiveram envolvidos em batalhas dramáticas, passaram a outros homens, a outros jovens, entregues hoje ao trabalho ou ao estudo, para que saibam lutar pelas instituições livres, a justiça, a liberdade, a democracia. Também hoje é preciso quebrar as resistências ao progresso, é preciso conquistar uma maior democracia nas fábricas e nas escolas; também hoje é preciso lutar pela paz no mundo; também hoje, afinal, é necessário lutar sem tréguas.(…)
Aos jovens cabe agora continuar no caminho certo, continuar a Resistência.”


In Giovanni Pesce
Sem Tréguas,Edições Avante!

[1] - De GAP - Grupos de Acção Patriótica
[2] - Assim se designaram os resitentes italianos da Segunda Guerra Mundial

quarta-feira, janeiro 05, 2005

ARTE DE TRANSFORMAR XIII

DA CONDIÇÃO HUMANA

Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre
que surgimos

Ary dos Santos

ARTE DE TRANSFORMAR XII

SONETO

Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
Porquê esperar, porquê, se não se alcança
Mais do que a angústia que nos é devida?

Antes aproveitar a nossa herança
De intenções e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.

Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mão que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita

Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.

Ary dos Santos

terça-feira, janeiro 04, 2005

Parabéns Luís

O Luís é um gajo que conheci quando tinha uns doze anos. Conheci-o na Festa do Avante! (no último ano da Ajuda), ele devia ter uns desasseis, era colega do Soviético, um amigo do bairro (que, uns anos antes, me partiu a cana do nariz com uma arma feita de pau. Todos os meus companheiros estavam prisioneiros da perigosa dupla de irmãos: o Soviético e o Chinês; eu preparei uma emboscada e na altura certa sai de trás de um arbusto gritando: mãos ao ar, larguem as armas, nada de truques! O Soviético, que sempre teve jeito para o teatro, achou que eu o estava a matar e encenou uma morte digna de um soldado; atirou-se para o chão e a arma foi pelo ar de encontro ao meu nariz). Chamavam-no Nazi porque falava alemão e era loiro-arruivado. Um tipo bestial! e engraçado! sempre em festa, sempre afável.Era o campeão a beber whisky (acho que o pai tinha um negócio de bebidas); bebia, bebia muito. Deixou de estudar e começou a trabalhar como estivador. Tinha a força de um touro. Quando eu tinha os meus quinze, desasseis anos o Luís começou a meter-se nas drogas duras. Depois resolveu fugir da tropa. Estava nas forças especiais, naquelas que se vestem de preto, cujo regimento fica lá para Lamego (acho). Ficou em minha casa alguns meses, escondido no sótão. Depois foi pela Europa, viveu em Amesterdão e acho que também esteve em França. Regressou. Voltou à rotina da heroína. Foi encontrado numa valeta por um outro amigo da Ajuda (já lá estava há alguns dias), teve uma recuperação fugaz. Foi preso. Escrevia à minha mãe, as cartas mais lindas que ela já recebeu. Tinha uma caligrafia angelical. Não lhe podiamos mandar livros de autores com nomes russos porque podiam incitar à revolta (isto no final da década de noventa). Esteve tuberculoso. Quando saiu da prisão andou muito mal. Arrumava carros em Belém. Deixei de o ver - cheguei a ouvir rumores de que teria morrido. Soube entretanto que tinha voltado a viajar. Há cerca de um ano atrás encontrei-o: eu vinha de um encontro do partido em Alcântra, ele estava felicíssimo, morava por ali, tinha sido pai de uma menina, trabalhava num restaurante. Faz anos a 3 de Janeiro.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

... Dá que pensar ... II

As calças de ganga não são americanas!
Aquela história sobre os tipos que andavam na corrida ao ouro fazerem calças com o tecido das tendas é uma treta!
O nome Jeans, vem de Genos, isto é; de Génova - imigrantes italianos terão levado com eles o tecido*, que por sua vez teria tido origem em Nimes, França. Daí que o outro nome dado ao tecido é Denim. Apesar de ter visto isto num canal frânces, na TV5 (e toda a gente sabe como os franceses se acham o centro do mundo) acredito francamente na sua veracidade. Sempre me fez confusão essa história das lonas das tendas serem tão finas ou as calças tão grossas. Por outro lado, Nimes, salvo erro, tinha uma das maiores indústrias têxteis no início da era industrial (ainda antes da revolução francesa), salvo erro também, foi aí que apareceram os primeiros teares Jaquards (inventados pelo tal Jaquard), que estão na origem da informática (funcionam com cartões prefurados que inspiraram a aplicação do sistema binário noutras áreas), e foi aí que surgiram as primeiras manifestações do socialismo (com as organizações de fraternidade operária).
Esta história da globalização...

* uma sarja pesada (feita em teares de 3 quadros), com teia branca e trama azul. A fibra é o algodão. A mesma estrutura é usada em tecidos cuja fibra é lã (tomando muitas vezes o nome de fazenda)


De volta

Voltei depois de uma longa ausência (bloguisticamente falando).

Uma catástrofe informática distanciou-me do mundo por algum tempo. Desta vez, para variar, a culpa não foi da grande cabala do capitalismo internacional (pelo menos directamente), foi minha, toda minha. Tive uma fúria e apaguei uma montanha de arquivos, na leva foi também o ficheiro de arranque do millenium. Como na Horta ninguém tem este sistema tive de aguardar pelo meu regresso a Lisboa. E só aí é que o Jorge Maurício, a quem agradeço do fundo do coração, arranjou o bicho como quem bebe um copo de água. Já agora, assim à laia de entrega dos óscares: agradeço ao Daniel que me arranjou o W-XP, ao Manuel Gouveia pelo esforço, ao Vasco Aleixo pelas bocas foleiras.

Agora estou de volta!!E em força!!!