projecto de mural par a a Festa do Avante! 2004
MUDAR DE DISCURSO
Uma prosa em verso
(dedicada à Maria do Céu e à Ana Lourido)
I
Dizem-me muitas vezes
Com preocupação
E até simpatia,
Ou com desprezo
E rancor,
Que o meu partido
Deve mudar de discurso
Sob o risco de entropia
E desaparecimento.
Dizerem-me isso
É como dizerem:
Muda o teu discurso.
O que é o mesmo
Que dizerem:
Muda o teu pensamento.
Não, não, nada disso,
Respondem,
As tuas ideias
São justíssimas,
Os teus objectivos
Generosos,
Tens é de mudar a forma,
O conteúdo é perfeito!
Alguns acrescentam:
Embora utópico,
Irrealizável.
Faço aqui um aparte:
Terão dito
Algo do género
A Jesus Cristo?
E os milhões
Que lhe prestam culto
Não acreditam
No seu apelo de mudança?
Acontece porém
Que as minhas ideias
Não são
líquido moldável
à forma de um recipiente.
São antes
Um cristal
De forma estruturada
E precisa
Em constante desenvolvimento
E segundo
Uma mesma matriz.
Não se pode moldar
Sem quebrar.
II
A forma do meu pensamento
Deve-se
Ao seu conteúdo.
O meu discurso
São as minhas ideias
E não se resume
A um enunciado simples:
Tenho uma razão de vida
Uma ideologia,
Um guia para a acção,
Como aliás,
Tem toda a gente.
Tenho-a,
De forma consciente.
E a consciência
Faz parte dela.
Cresci
No meio da maioria,
Entre aqueles
Que só têm
A sua força de trabalho
Como garantia de sustento.
Mas,
Cresci também
Perto de gente
Que me ensinou
A questionar tudo,
Tudo.
Principalmente
A apregoada imutabilidade
Da organização social,
A repetida natureza egoísta
Do ser humano,
Em suma;
O sedimentado estado
Em que uns,
Proprietários
Dos meios de produção,
Exploram os outros,
Que apenas possuem
Braços e cabeça
Para trabalhar
III
Formei-me como ser humano
Com esta massa
De experiências e ideias
Eu sou isto.
Outros crescem
Assimilando a cultura
Do individualismo
E do sucesso.
Outros crescem
Achando que um dia
A divina providência
Resolverá
Os problemas da humanidade.
Outros crescem
Convencendo-se
Que as coisas mudam
Por adaptação.
Outros crescem
Pensando que
O mundo muda
Apenas com tolerância
E boa disposição
Outros crescem
Julgando
Que tudo está bem
E que existem uns
Rancorosos,
Invejosos,
Preguiçosos,
Que exageram
O que está mal
Outros,
Muitos,
Muitos,
Talvez a maior parte,
Nem cresce,
Nem pensa:
Subsiste
IV
Eu formei-me
Como ser humano
Tomando consciência
Que não existe
Uma ordem natural
Da sociedade.
Nada é natural
Na sociedade.
Tudo é construído.
E se tudo é construído
Tudo pode ser
Reconstruído.
Como seres humanos
Ganharíamos
Muito mais,
Colectiva
E individualmente,
Com o equilíbrio das relações.
O poder de uns
Sobre outros
Sustentado na força
Ou na propriedade,
Na manipulação
E na humilhação,
Não beneficia ninguém,
Não confere sentido
À vida de ninguém,
Não torna ninguém
Mais feliz.
IV
E assim sendo,
Eu, e todos
Os que partilham
destas ideias,
Agimos
Na convicção
De que as coisas
Podem e devem mudar.
Eu,
E os que partilhamos
Estas ideias e objectivos,
Todos os dias
Pensamos
e repensamos
O caminho
Que devemos trilhar.
E todos os dias
Avaliamos
a nossa força
e os meios que temos
para romper
com o estado das coisas.
Invariavelmente concluímos
Que há que convencer
Mais e mais pessoas
Para a necessidade de mudar.
Concluímos
Que é fundamental
Engrossar fileiras.
V
Mas não é fácil,
Não é nada fácil.
A humanidade
Ainda não amadureceu.
Muitos ofuscam-se
Com o brilho de holofotes
Sobre sorridentes heróis de plástico.
Outros
Ficam embalados
Com frases e ideias
Repetidas incontáveis vezes,
Lamentando com doces vozes
A pobreza e a miséria
Enquanto outras informam,
Com disfarçado cinismo,
Que não há nada a fazer;
É o preço a pagar.
Tudo o que se podia fazer
Foi feito.
A maioria
Impressiona-se
Com os apelos
À calma e à contenção
Que marionetas,
Em fatinhos
E poses de estado,
Vão produzindo
Os seres humanos
Ainda estão imberbes,
Ainda não levantaram os olhos
Para ver os outros.
A solidariedade e o altruísmo
São valores
Que para muitos
Ainda estão desligados
Do sentido crítico
E da vigilância.
Ou seja;
Só se lembram deles
Se a caixinha de imagens
Assim o disser.
A manipulação
É imensa,
Brutal,
Tão gigantesca
Que não existe
Campo de visão
Para a alcançar
Num olhar.
Os seres humanos
Obedecem
De tal forma
À voz do dono
Que nem se dão conta
Que pisam o companheiro.
VI
E há quem nos diga:
O vosso discurso
Tem de ser atractivo,
Não podem
Usar velhas fórmulas,
Velhas propostas,
Velhas palavras.
Ah! Não!
Não podemos
Submeter a estratégia
À táctica.
Vivemos
A velha exploração,
A velha mentira,
O velho medo.
E as velhas palavras,
As velhas propostas,
As velhas fórmulas,
Continuam válidas
É certo
que a ofensiva
foi apurada.
Mas também
A nossa análise
Foi refinada.
E havendo
Outros métodos,
Outras estratégias,
Outros modos eficazes,
Sem concessões
Ao sistema da exploração,
Da vilania,
Do individualismo,
Do terror,
Da mentira,
De melhorar,
De libertar a humanidade,
Eles que se apresentem,
Que se discutam
Que se expliquem,
Que vinguem.
VII
Todos os dias
Pensamos
e repensamos
O caminho
Que devemos trilhar.
A humanidade é muito imatura
E corre o risco
De se tornar velha
Sem ter sido jovem.
É preciso
E é possível mudar.
Mais
Do que uma mudança
De discurso
O que o mundo precisa
É de muitos e bons
Amplificadores
Da nossa voz,
Gente descomprometida,
Que compreenda
Que é preciso apontar,
Denunciar,
Chamar
Os bois pelos nomes,
Apelar
E despertar as mentes,
Sem medo do pensamento dissonante,
Sem receio da discussão,
Com capacidade de afirmação
E de conquista
De mais e mais seres humanos
Dispostos a integrarem
Uma torrente de água fresca
Nesta terra seca
Em que o mundo se está a tornar.
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